*As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a posição da ANPR.
Lucas Dias | Procurador da República no Acre, é coordenador do Grupo de Trabalho LGBTQIA+ da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (MPF)
Renan Quinalha | Professor de direito da Universidade Federal de São Paulo, é coordenador do Núcleo TransUnifesp e presidente do Grupo de Trabalho de Memória e Verdade LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania
Em 2020, após as eleições municipais, a influenciadora Isabella Cêpa publicou um vídeo em que disse estar decepcionada porque "candidatas verdadeiramente feministas não foram eleitas". Em tom irônico, completou: "A mulher mais votada é homem". Referia-se à hoje deputada federal Erika Hilton(PSOL-SP), então eleita vereadora. A frase não é mera opinião. É um ataque direto à identidade de gênero de uma mulher trans. Negar a condição de mulher de Hilton, ao chamá-la de "homem", é o exemplo mais cristalino do que significa a transfobia.
Alguns têm tentado relativizar esse episódio como se a frase discutisse a distinção entre sexo e gênero ou fosse uma crítica política legítima. Mas aqui, definitivamente, não se trata de uma questão de liberdade de expressão.
A Constituição assegura a todos o direito de expressar opiniões, mas também promete a todas as pessoas dignidade e igualdade. Quando uma fala nega a existência de alguém em sua identidade mais fundamental, ela deixa de ser opinião e passa a ser violência. Dizer que uma mulher trans é "um homem" não é apenas um erro de linguagem. É um gesto político que reforça estigmas. Palavras, quando naturalizam esse tipo de negação, funcionam como autorização simbólica para agressões e assassinatos.
É impossível ignorar o contexto da frase dita. Estamos falando de um ataque concreto, em rede social aberta com milhares de seguidores, dirigido a uma pessoa pública, com evidente intuito de deslegitimar sua existência.
Por isso, o Judiciário tem sido chamado a se pronunciar. O debate que se seguiu a essa postagem não diz respeito apenas à deputada, mas à forma como o Estado brasileiro irá responder diante da transfobia.
Considerar que tais falas estão protegidas pela liberdade de expressão significaria abrir uma brecha perigosa: se é aceitável negar que uma mulher trans é mulher, o que mais será tolerado? Estaríamos afirmando como liberdade de expressão se uma ofensa análoga fosse dirigida contra uma pessoa negra, um migrante ou uma pessoa com deficiência?
Na relação entre particulares, já tem se consolidado entendimento de que esse tipo de fala enseja o dever de reparação. Recente decisão da Justiça de São Paulo condenou o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) a pagar indenização de R$ 40 mil, por danos morais a uma mulher trans, após postar em sua rede que "ela se considera mulher, mas ela é um homem".
Avançamos, portanto, na compreensão da transfobia como ilícito cível, mas ainda devemos avançar no enquadramento penal dessas condutas. Nem se diga que a apreciação judicial de uma conduta para verificar sua tipicidade criminal seja uma estratégia de silenciamento ou de interdição. Debate público só produz dissenso verdadeiro e frutífero quando podemos controlar as violências. E cabe ao Estado tal tarefa.
A criminalização da transfobia no Brasil, embora seja um avanço jurídico na proteção de direitos à comunidade LGBTI+, insere-se em um cenário global complexo, em que uma cruzada moral contra o gênero tem produzido autoritarismos e restrição de liberdades, como já se vê em outros países.
Não se avançará na criminalização da transfobia se condutas como as analisadas aqui forem justificadas por uma supostamente ilimitada liberdade de expressão.