As terminologias desempenham papel crucial no desenvolvimento e consolidação do conhecimento humano, uma vez que viabilizam a transmissão dos respectivos conceitos e ideias entre as sucessivas gerações. Todavia, também são responsáveis pela perpetuação de equívocos interpretativos, sedimentando hipóteses e conclusões por vezes não condizentes com a realidade histórica.
No campo das Ciências Sociais, o quadro não é diferente. Por exemplo, as noções inerentes ao positivismo jurídico sobreviveram à passagem do tempo, propiciando que estudantes e profissionais tenham contato ainda na atualidade com os ensinamentos de, dentre outros, Hans Kelsen1; por outro lado, o termo também perpetuou a noção equivocada de que se trata de uma corrente de pensamento cuja única suposta contribuição fora o suporte a regimes ditatoriais, haja vista a insistente relação com o regime nazifascista. O termo darwinismo social, atribuído a Herbert Spencer2, provoca verdadeira ojeriza, tendo em vista que sempre associado à ideia de prevalência do mais forte sobre o mais fraco, também sendo apontado como suporte teórico – e de fato o foi - a regimes autocráticos que se valeram da eugenia como política de Estado.
Obviamente, muitas das críticas aos termos e respectivas doutrinas exemplificativamente apontados acima são procedentes e merecedoras da devida consideração. Porém, a rejeição automática a toda e qualquer análise relega ao esquecimento o fato de que interpretações equivocadas e o consequente repúdio irrefletido podem limitar eventuais construções teóricas e práticas que, em verdade, mostram-se positivas à respectiva sociedade. Exemplificando, o positivismo jurídico para alguns configura um vetor de manutenção da ordem jurídica frente a investidas autoritárias. Quanto ao darwinismo social, apesar de efetivamente muito contestável em seus termos originais, a natural evolução teórica a respeito do tema deu suporte a noções que hoje sustentam que o meio ambiente em sentido lato (cultura, condições socioeconômicas etc.) desempenham papel relevante no desenvolvimento do indivíduo, de forma que, por exemplo, a questão das oportunidades oferecidas àquele são determinantes para o seu afastamento da criminalidade.
Uma das manifestações mais contundentes do repúdio generalizado descrito acima é constatada quando da simples menção à ideia de eficiência em matéria de Direto Penal, uma vez que redunda fatalmente no recurso ao utilitarismo como doutrina absolutamente incompatível com um sistema penal de matriz kantiana e liberal. De fato, a Análise Econômica do Direito Penal, ao lançar mão de noções e técnicas oriundas da Economia para fins de avaliação da eficiência do sistema penal sob o prisma, em regra, da noção de maximização do bem estar social, é de imediato atacada por parte considerável da doutrina penalista, geralmente por meio do recurso à inadmissível aplicação do utilitarismo à ideia de liberdade; essa, valor fundamental resguardado pelo ordenamento penal frente as investidas do Estado. Ou seja, para parcela considerável da doutrina penalista, pensar em eficiência em matéria de Direito Penal é, a priori, transformar o indivíduo em um meio para a consecução de fins meramente econômicos, procedimento que transforma, no entendimento de tais críticos, o sistema penal numa espécie de “balcão de negócios” de matriz utilitarista. No desenvolvimento de tais críticas, Stuart Mill3 é o algoz preferencial.
Ocorre que, tomar a Análise Econômica do Direito Penal como uma espécie de pecado capital, cuja simples menção deve ser evitada, é desconsiderar, primeiramente, que a própria construção histórica do ordenamento jurídico se pauta em raciocínios consequencialistas, uma vez que voltado à ideia de regulação de comportamentos humanos, os quais desenvolvem-se e são aferidos para fins de normatização com base nos respectivos resultados – consequências – verificáveis no mundo dos fatos. Ou seja, por mais que o repúdio kantiano a qualquer análise utilitarista legitimamente ainda reverbere atualmente, o ordenamento jurídico penal não configura um conjunto de normas elaboradas e dadas de forma absolutamente independente da realidade social.
De fato, como bem observa Silva-Sanchéz4, alguns dos princípios penais de maior relevância baseiam-se, fatalmente, em análises de cunho consequencialista, haja vista que, por exemplo, sustentar, em sentido amplo, que o Direito Penal somente deve ser empregado quando imprescindível e efetivamente necessário – princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da intervenção mínima etc. – nada mais é que do proceder a uma aferição também pautada no noção de resultados e, goste-se ou não, de eficiência do ordenamento jurídico5.
Em complemento, apesar do constante emprego do termo utilitarismo como argumento supostamente irrefutável, as críticas à ideia de eficiência aplicada ao sistema penal não abrem mão do punitivismo como recurso dialético adicional. Ou seja, no entendimento de tais críticos, ao supostamente se transmudar o indivíduo num mero instrumento para o atingimento de finalidades expostas e trabalhadas com base no argumento econômico, o resultado incontornável será um incremento no punitivismo estatal. Todavia, ao se analisar as principais produções científicas em matéria de análise do crime sob uma ótica econômica, constata-se que, apesar de não adentrarem à consideração da principiologia penal, uma vez que essa escapa ao cerne do estudo econômico, as hipóteses levantadas e, em regra, confirmadas apontam e em consequência sugerem a adoção de políticas criminais que redundariam no desencarceramento, na noção ampla de que a pena de prisão deve ser relegada à condição de última alternativa a ser empregada pelo Estado quando da regulação e controle do fenômeno criminal.
A título de exemplo, em regra se valendo da noção de maximização do bem estar social, Shavell6 e Becker7, autores consagrados no campo da aplicação de princípios econômicos também ao crime enquanto fato social, há muito sustentaram, apesar de algumas variações nas fundamentações: que os jovens devem ser agraciados com políticas públicas voltadas à construção de oportunidades alternativas ao crime, e não com a pena de prisão; que a pena de prisão deve ser tomada como última alternativa, devendo o Estado dar, em regra, preferência às multas; que, apesar do fato de que a pena de morte ostenta algum efeito dissuasório, a sua previsão provavelmente não é adequada, uma vez que o custo social decorrente do risco da punição de inocentes desaconselha o recurso; que a pena de prisão para crimes leves não faz sentido sob a ótica econômica, ante o custo social do encarceramento; que a pena de prisão possui um elevado custo socioeconômico, de forma que a sua aplicação com vistas à inabilitação do indivíduo exige uma análise cuidadosa, devendo ser empregada apenas nos casos de crimes efetivamente graves; que o aumento da eficiência do sistema de persecução penal incrementa o risco de apreensão do criminoso, porém, possui um custo econômico considerável, de forma que o respectivo planejamento deve também considerar outras alternativas, a exemplo da oferta educacional e de cunho social. Analisando-se tais conclusões, aparentemente, afirmar que o emprego de tais noções econômicas ao sistema penal configura homenagem ao punitivismo estatal é no mínimo precipitado.
Ademais, os críticos da Análise Econômica do Direito Penal deixam de considerar que muitos de seus próprios argumentos são pautados na noção de eficiência e, logo, consequencialistas. Em matéria de política de drogas, é corrente o recurso à hipótese de que o aprisionamento de usuários e pequenos traficantes consagra uma política criminal e previsão normativa manifestamente desprovidas de resultados positivos à sociedade; conclusão defendida por parcela considerável dos economistas8. Também é comum o ataque às propostas de revisão da maioridade para fins penais, crítica essa formulada fatalmente com base em argumentos consequencialistas. Como já sustentado acima, lançar mão de princípios penais como instrumento para a crítica legítima ao aprisionamento é também discorrer sobre eficiência em matéria penal. Defender que há de se privilegiar a investigação de crimes graves, a exemplo do homicídio, em prejuízo de prisões em flagrante também não escapa à ideia de uma hipótese pautada na busca por resultados ótimos. Finalizando a exemplificação, no âmbito do Direito Penal Econômico, a crítica reiterada contra a criminalização de condutas empresariais que, segundo a doutrina penalista predominante, deveriam ser reguladas por meio de normas administrativas ou da autorregulação também se amolda, à perfeição, ao argumento econômico baseado na noção de resultados, logo, das respectivas consequências.
Concluindo, é tentador o recurso à crítica baseada num termo – utilitarismo – cuja simples menção configura um suposto anátema que dispensa maiores reflexões a respeito. Contudo, tal simplismo pode redundar na desconsideração de elementos teóricos e de fato que, potencialmente, podem ser positivos a uma determinada sociedade. No caso da Análise Econômica do Direito Penal, arrisca-se aqui sustentar, a título de conclusão, que a sua devida e séria consideração pode sustentar a adoção e promoção de políticas criminais e, em consequência, de normas penais inerentes a um Direito Penal de matriz liberal, em vez de punitivista.
1 KELSEN, Hans. O que é justiça? 3ª ed. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
2 AGUIAR, Julio César de. Teoria Analítico-Comportamental do Direito: para uma abordagem científica do direito como sistema social funcional. Porto Alegre: Núria Fabris, 2017.
3 MILL, John Stuart. O utilitarismo. 2ª ed. Tradução: Alexandre Braga Massela. São Paulo: Iluminuras, 2020.
4 SANCHÉZ, Jesús-María Silva. Eficiência e Direito Penal. Trad: Mauricio Antonio Ribeiro. Barueri: Manole, 2004.
5 Adere-se, com Silva-Sanchéz, ao entendimento que sustenta que a aplicação da ideia de eficiência ao Direito Penal não deve prescindir da devida valoração dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, oponíveis ao Estado enquanto titular do poder punitivo.
6 SHAVELL, Steven. Criminal Law and the Optimal Use of Nonmonetary Sanctions as a Deterrent. Columbia Law Review, vol. 85, no. 6, 1985, pp. 1232–1262. Disponível em: www.jstor.org/stable/1122393. Acesso em: 05 out. 2020.
7 BECKER, Gary S. The Economic Approach to Human Behaviour. Chicago: The University of Chicago Press, 1990.
8 THORNTON, Mark. Criminalização: análise econômica da proibição das drogas. Tradução: Cláudio A. Téllez-Zepeda. São Paulo: LVM Editora, 2018. E-book.
* Elton Luiz Bueno Candido, procurador da República, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília, com pesquisa desenvolvida no campo da eficiência do sistema penal, professor de Direito Penal Econômico em cursos de pós-graduação lato sensu. E-mail: