Artigos

A Constituição de 88 não é o marco temporal caracterizador da posse indígena

 * Artigo publicado no site Jota em 12/06/2016

O STF, ao julgar a Petição 3388/09, famoso caso Raposa Serra do Sol, estipulou, na condicionante de n. 11, que a Constituição de 1988 era o referencial insubstituível para o dado da ocupação de um espaço geográfico por determinada etnia e que a tradicionalidade dessa mesma ocupação não se perderia onde, ao tempo da promulgação do mesmo texto constitucional, a reocupação não tivesse ocorrido apenas por força de renitente esbulho por parte de não-índios.

Dessa compreensão, como era de se esperar, advieram decisões mais atuais proferidas por turma daquele Tribunal que já trouxeram interpretações levadas a efeito com base nela, v.g., ARE 803462 e RMS 29087 – objeto de recursos do MPF.

A tese aqui defendida é a de que essa interpretação não se afigura a mais adequada à proteção dos direitos fundamentais indígenas por violar a variação da máxima da proporcionalidade representada pela proibição da proteção deficiente.

Por primeiro é de se destacar que, segundo doutrina José Afonso da Silva[1], a indicação da data da promulgação da Constituição de 88 como uma espécie de termo ad quem para a configuração da posse indígena não está escrita, nem implícita, nem explicitamente, em nenhum dispositivo constitucional.

Aqui uma primeira observação autoral. É ela referida a que, toda vez que a Constituição quis se referir a si própria, ela o fez expressamente, tal qual faz exemplo o contido no artigo 60, caput, que trata de seu processo de emenda. Essa autorreferência é conhecida como autológica, i.e., a Constituição dirige a palavra em primeira pessoa, ou, nas palavras de Luhmann[2], a Constituição diz eu a si mesma.

O próprio STF, por ao menos um voto de seus ministros, aqui o voto do Min. Luiz Fux, no RE 655265[3], vencido junto a mais dois ministros, quando quer, lança mão desse argumento, ou seja, que a Constituição, no que diz com a exigência de comprovação do tempo de três anos de atividade jurídica para ingressar nos cargos da magistratura e do ministério público, não positiva expressamente o marco a ser considerado – caso jurídico aqui tomado por analogia.

Com relação à comprovação do renitente esbulho, tal como exigida nos julgados antecitados, além de significar uma discutível transferência da observação do intérprete do âmbito do direito constitucional ao direito privado, de vez que demanda, segundo a interpretação ora analisada, a instauração de um conflito fundiário – e aqui pouco importa se se trata de indigenato ou de fato indígena –, quer dizer também que a qualificadora renitente parece valer mais que o próprio esbulho – pois se trata de renitente esbulho e não do seu contrário –, o que foi argutamente observado por José Afonso da Silva em seu parecer supracitado, como que a exigir dos índios que comprovem a situação de renitência do esbulho até a data de promulgação da Constituição de 88 – que os índios foram esbulhados de sua posse não parece haver dúvida, pois tal fato se encontra historicamente provado.

Exigir esse manejo dos institutos e das ações jurídicas dos índios é, com o máximo respeito, criar uma nova categoria na já triste e sofrida história desses povos, qual seja, a da crueldade interpretativo-constitucional.

Portanto, interpretar nesse sentido parece ser como cometer um erro epistemológico, pois que em nenhum dispositivo a Constituição, referentemente aos direitos indígenas, preceitua, expressamente, que ela mesma seja tomada como marco temporal ou termo ad quem caracterizador da posse indígena nem muito menos exige a comprovação de renitente esbulho.

E tanto é adequado afirmar como se afirma que, se se está a tratar de direitos indígenas, então se trata de direitos fundamentais. Este ponto é relevante à compreensão da tese aqui defendida.

Os direitos indígenas são fundamentais porque carregam consigo as marcas da universalidade, da preferencialidade, da moralidade, da fundamentalidade e da abstração[4]. Não é caso, neste pequeno espaço, de se descrever todas essas características (respeitosamente, remetemos o leitor ao livro de nossa autoria, Os direitos dos índios – fundamentalidade, paradoxos e colonialidades internas, Café com Lei, SP, 2015). Saciemos-nos com apenas uma delas, qual seja, a fundamentalidade. A fundamentalidade de um direito se manifesta quando o interesse, que pode ser tocado pelo direito, uma vez não satisfeito ou violado, causar grave sofrimento ou a morte ou tocar o núcleo da autonomia, que é a liberdade.

Pensemos, agora, no direito indígena ao seu território, e na sua não-satisfação ou violação. As consequências desses atos bem podem ser traduzidas pelo sofrimento grave ou pela morte – o que a empiria não se cansa, infelizmente, de demonstrar, raro caso de verdade autoevidente –, seja porque deles decorrem uma real afronta à sua condição de permanência – e não transitoriedade –, seja porque deles decorrem uma interdição a sua reprodução física e cultural.

Assentada essa premissa, não é difícil conceber que, por se tratar de direito fundamental, o direito indígena ao seu território, como inscrito no artigo 231, caput e parágrafos, da Constituição, deve ser objeto da aplicação da máxima da proporcionalidade e, mais especificamente, da proibição da proteção deficiente, esta que, como variação da máxima da proporcionalidade, se define como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, com cuja aplicação pode determinar-se se um ato estatal – por antonomásia uma omissão – vulnera um direito fundamental de proteção[5] – aqui entendido, acrescentamos, em sentido amplo, i.e., de defesa, a prestação e de reconhecimento.

Quando se pensa em proibição da proteção deficiente, em geral se pensa na ação ou omissão legislativa, mas não judicial. Neste breve artigo toma-se a posição de que mesmo uma decisão judicial – e mesmo que, no limite, seja emitida pelo STF – pode ser objeto da interdição.

Sobre a possibilidade de que decisão judicial possa ser objeto da incidência da proibição da proteção deficiente, não parece haver dúvida de que o controle respectivo, se for o caso, pode ser detonado via recurso aos tribunais superiores ou mesmo via ADPF, conforme lecionam, para o último caso, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco[6].

O próprio STF, nas ADPF 101, 144 e 388, esta última naquilo que for compatível, já decidiu admitindo a hipótese. Contudo, a tese aqui construída não tem por objeto principal a possibilidade de ajuizamento de ADPF; utiliza-se apenas como arrimo ao argumento principal representado pela possibilidade de violação da proibição da proteção deficiente por decisão judicial.

Um outro exemplo forte vem do STJ, que no Recurso Especial n. 1.439.894[7], desproveu recurso do INSS, prestigiando, a contrario sensu, decisão judicial que reconhecia o direito ao salário-maternidade às indígenas menores de 16 anos de idade, i.e., decisão judicial que protegia, suficientemente, o direito fundamental em jogo.

Diante desse quadro, entendemos que as decisões proferidas pela 2ª Turma do STF, que indicam a Constituição de 88 como marco temporal à caracterização da posse indígena, são violadoras da máxima da proporcionalidade em sua variação da proibição da proteção deficiente, pois violam, data vênia, o direito fundamental indígena ao seu território, seja porque não está positivado, expressamente, em qualquer dispositivo constitucional o tal marco, seja porque trivializa uma discussão a respeito de um direito fundamental ao cingi-la ao direito privado.

Por fim, parece ser sempre necessário lembrar que tradicionalidade não significa antiguidade – podendo, inclusive, ser prospectiva –, mas sim o modo pelo qual aquele que detém a posse se relaciona com a terra, o que, para os índios, constitui-se em habitat.

Referências

[1] http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/artigos/docs_artigos/parecer-jose-afonso-da-silva-marco-temporal.pdf.

[2] Die Verfassung sagt ich zu sich selbst), conforme, em alemão, Verfassung als evolutionäre Errungenschaft, in Rechtshistorische Journal, n. 9, 1990, p. 176-220 (187); em francês La Constitution comme acquis évolutionnaire, in DROITS – Revue Française de Théorie Juridique, PUF, Paris, n. 22, p. 103-125 (113), e em italiano La Costituzione come conquista evolutiva, in ZAGREBELSKY, Gustavo; PORTINARO, Pier Paolo e LUTHER, Jörg (a cura di), Il Futuro della Costituzione, Einaudi, Torino, 1996, p. 83-128 (94)

[3] https://www.jota.info/stf-reafirma-candidato-juiz-tem-de-provar-3-anos-de-atividade-juridica-ao-se-inscrever-em-concurso

[4] Robert Alexy, Direitos fundamentais no estado constitucional democrático, in: Constitucionalismo discursivo, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2011.

[5] Carlos Bernal Pulido, El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2007, p. 806-807.

[6] Curso de Direito Constitucional, Saraiva, SP, 2013, p. 1234-1236.

[7]https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=50611389&num_registro=201400483462&data=20150828&tipo=5&formato=PDF. PAULO THADEU GOMES DA SILVA – Mestre e doutor em Direito, procurador regional da República em São Paulo, professor da ESMPU.

Paulo Thadeu Gomes da Silva – Mestre e doutor em Direito, procurador regional da República em São Paulo, professor da ESMPU.

logo-anpr