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A COP que deveria projetar o Brasil — e acabou expondo suas fraquezas

*As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a posição da ANPR.

 

 

Thiago Lacerda Nobre | Procurador da República, membro do Ministério Público Federal, com quase 20 anos de atuação na defesa do meio ambiente, do patrimônio público e na persecução de crimes ambientais e transnacionais. 
 

 

Havia algo de simbólico, quase inevitável, na ideia de realizar uma COP no coração da Amazônia. Depois de anos de disputas políticas internas, pressões ambientais externas e tentativas de reposicionamento global, o Brasil tinha ali uma chance rara: pegar a bandeira do clima, colocar-se no centro do palco e, enfim, exercer a liderança que tantos discursos prometeram. Não era uma oportunidade qualquer. Era uma oportunidade histórica. E, no entanto, o que se viu foi uma sucessão de falhas operacionais, constrangimentos diplomáticos e um desconfortável silêncio das grandes potências. Resultado: o país que sonhava liderar saiu menor do que entrou.

Não faltou aviso. Meses antes da conferência, a ONU já demonstrava preocupação com os preços “incompatíveis” praticados pela rede hoteleira de Belém, valores que chegaram a ultrapassar, em várias vezes, a própria diária padrão paga pela UNFCCC às delegações de países pobres. Surgiram relatos de diárias multiplicadas por dez, vinte vezes o valor usual. O problema afetou sobretudo nações africanas, caribenhas e pequenos Estados insulares, justamente aqueles que mais dependem do processo multilateral. Quando uma COP começa com reuniões de emergência para tratar de hospedagem inacessível, algo já está fora do lugar.

A infraestrutura se arrastou sob crítica constante. Obra atrasada, improviso logístico, soluções apressadas — de navios-hotel a alojamentos alternativos — alimentaram a percepção, amplamente difundida na imprensa estrangeira, de que a cidade não estava pronta. E, quando o evento começou, o diagnóstico se confirmou. Houve alagamentos em pavilhões, infiltrações na Zona Azul, queda de energia, calor excessivo e áreas sem ar-condicionado, tudo minuciosamente relatado por veículos internacionais. Para culminar, uma carta dura da ONU, tornada pública pelo Correio Braziliense, apontou falhas de segurança, problemas estruturais e riscos operacionais. A mensagem era clara: o padrão exigido não foi entregue.

O incidente talvez mais emblemático da contradição logística veio da própria matriz energética do evento. Reportagens registraram a dependência de dezenas de geradores movidos a diesel — com cheiro constante e fumaça percebida por participantes — justamente na COP que deveria simbolizar a transição para energia limpa. O edital previa combustível renovável (B100), mas o governo alegou inviabilidade logística e compatibilidade técnica, optando pelo diesel comum. O efeito político foi devastador: a conferência que discutia a saída dos fósseis operava à base de fóssil. 

A partir daí, a situação degringolou diante das câmeras. Manifestantes conseguiram ultrapassar barreiras e entrar na área restrita de negociações, provocando reações imediatas da UNFCCC. Dias depois, um incêndio em parte da estrutura causou evacuação em massa, suspensão de atividades e atendimento médico a pessoas afetadas pela fumaça, fato noticiado pela Reuters e pela Associated Press. Nada disso combina com um país que pretendia demonstrar maturidade institucional e capacidade de conduzir o debate climático global. 

Mas talvez o ponto mais simbólico tenha sido o esvaziamento político. A COP30 registrou uma das menores presenças de chefes de Estado dos últimos anos, cerca de 60 líderes, segundo a Reuters. Para comparação, a COP28 contou com mais de 160. E, entre os ausentes, os gigantes: Estados Unidos, China, Índia, Itália, entre outros. Não se trata de mera contabilidade diplomática. Quando nenhuma grande potência se desloca até a cidade-sede, a leitura é inevitável: a conferência perdeu prioridade, e o anfitrião perdeu prestígio. 

As próprias relações bilaterais sofreram arranhões públicos. O chanceler alemão Friedrich Merz, por exemplo, fez comentários depreciativos sobre Belém ao retornar para Berlim — o tipo de frase que, mesmo suavizada depois, revela o grau de desgaste percebido pelos visitantes. Na política internacional, símbolos importam. E este simbolismo, infelizmente, jogou contra o Brasil.

No campo substantivo, a frustração foi igualmente profunda. O documento final, aprovado após negociações estendidas, foi descrito por observadores e por governos como “fraco” e “vago”, com compromissos pouco operacionais, lacunas centrais e ausência de uma rota clara para lidar com combustíveis fósseis. A crítica mais dura veio de países europeus e de Estados vulneráveis do Pacífico, que viram o texto como incapaz de acelerar a transição energética ou amarrar metas verificáveis. Em resumo: a COP amazônica terminou com um acordo que não fez jus ao que a Amazônia exigia e ao que o Brasil prometera liderar. 

Some-se a isso um constrangimento social que também vazou para a imprensa: Belém está entre as capitais com pior cobertura de coleta de esgoto do país. Dados do Instituto Trata Brasil apontam que a cidade coleta cerca de 20% do esgoto gerado e trata apenas uma fração mínima disso. É difícil vender protagonismo ambiental quando a cidade-sede, símbolo do evento, expõe ao mundo a precariedade do saneamento básico na Amazônia urbana. 

E como se não bastasse, surgiu ainda a sombra da desconfiança: entidades de controle social e imprensa apontaram riscos de superfaturamento e baixa transparência em contratos ligados às obras e serviços da COP30. A Transparência Internacional Brasil publicou alerta específico sobre a falta de dados claros, licitações sensíveis e o histórico de vulnerabilidade desse setor a corrupção, cobrando prestação de contas detalhada. Não é uma acusação fechada; é pior: é a reintrodução da suspeita. E suspeita, em política internacional, já é dano real. 

Não se trata aqui de negar os méritos da sociedade brasileira, nem de desconsiderar a potência ambiental que o país representa. Muito menos de atacar a Amazônia, patrimônio civilizatório que deveria nos inspirar responsabilidade e grandeza. Mas liderança internacional não se improvisa. Ela exige previsibilidade, competência administrativa, capacidade logística e sobriedade institucional. E nenhum desses elementos se mostrou presente de maneira consistente.

O saldo, portanto, é duro: a COP que deveria projetar o Brasil acabou expondo suas fraquezas. A vitrine virou espelho, e o reflexo não foi bom.

Há quem diga que “o importante é ter sediado”. Mas não é bem assim. O importante era ter liderado. Era ter aproveitado a chance para demonstrar capacidade, articulação e seriedade. Era ter mostrado ao mundo que o Brasil não é apenas guardião de uma floresta, mas também um ator confiável, preparado e tecnicamente competente para conduzir o debate climático global.

A Amazônia nos dá um lugar natural de destaque. Mas não garante liderança. Liderança se constrói. E, desta vez, ela escorregou pelas mãos.

Havia algo de simbólico, quase inevitável, na ideia de realizar uma COP no coração da Amazônia. Depois de anos de disputas políticas internas, pressões ambientais externas e tentativas de reposicionamento global, o Brasil tinha ali uma chance rara: pegar a bandeira do clima, colocar-se no centro do palco e, enfim, exercer a liderança que tantos discursos prometeram. Não era uma oportunidade qualquer. Era uma oportunidade histórica. E, no entanto, o que se viu foi uma sucessão de falhas operacionais, constrangimentos diplomáticos e um desconfortável silêncio das grandes potências. Resultado: o país que sonhava liderar saiu menor do que entrou.

Não faltou aviso. Meses antes da conferência, a ONU já demonstrava preocupação com os preços “incompatíveis” praticados pela rede hoteleira de Belém, valores que chegaram a ultrapassar, em várias vezes, a própria diária padrão paga pela UNFCCC às delegações de países pobres. Surgiram relatos de diárias multiplicadas por dez, vinte vezes o valor usual. O problema afetou sobretudo nações africanas, caribenhas e pequenos Estados insulares, justamente aqueles que mais dependem do processo multilateral. Quando uma COP começa com reuniões de emergência para tratar de hospedagem inacessível, algo já está fora do lugar.

A infraestrutura se arrastou sob crítica constante. Obra atrasada, improviso logístico, soluções apressadas — de navios-hotel a alojamentos alternativos — alimentaram a percepção, amplamente difundida na imprensa estrangeira, de que a cidade não estava pronta. E, quando o evento começou, o diagnóstico se confirmou. Houve alagamentos em pavilhões, infiltrações na Zona Azul, queda de energia, calor excessivo e áreas sem ar-condicionado, tudo minuciosamente relatado por veículos internacionais. Para culminar, uma carta dura da ONU, tornada pública pelo Correio Braziliense, apontou falhas de segurança, problemas estruturais e riscos operacionais. A mensagem era clara: o padrão exigido não foi entregue.

O incidente talvez mais emblemático da contradição logística veio da própria matriz energética do evento. Reportagens registraram a dependência de dezenas de geradores movidos a diesel — com cheiro constante e fumaça percebida por participantes — justamente na COP que deveria simbolizar a transição para energia limpa. O edital previa combustível renovável (B100), mas o governo alegou inviabilidade logística e compatibilidade técnica, optando pelo diesel comum. O efeito político foi devastador: a conferência que discutia a saída dos fósseis operava à base de fóssil. 

A partir daí, a situação degringolou diante das câmeras. Manifestantes conseguiram ultrapassar barreiras e entrar na área restrita de negociações, provocando reações imediatas da UNFCCC. Dias depois, um incêndio em parte da estrutura causou evacuação em massa, suspensão de atividades e atendimento médico a pessoas afetadas pela fumaça, fato noticiado pela Reuters e pela Associated Press. Nada disso combina com um país que pretendia demonstrar maturidade institucional e capacidade de conduzir o debate climático global. 

Mas talvez o ponto mais simbólico tenha sido o esvaziamento político. A COP30 registrou uma das menores presenças de chefes de Estado dos últimos anos, cerca de 60 líderes, segundo a Reuters. Para comparação, a COP28 contou com mais de 160. E, entre os ausentes, os gigantes: Estados Unidos, China, Índia, Itália, entre outros. Não se trata de mera contabilidade diplomática. Quando nenhuma grande potência se desloca até a cidade-sede, a leitura é inevitável: a conferência perdeu prioridade, e o anfitrião perdeu prestígio. 

As próprias relações bilaterais sofreram arranhões públicos. O chanceler alemão Friedrich Merz, por exemplo, fez comentários depreciativos sobre Belém ao retornar para Berlim — o tipo de frase que, mesmo suavizada depois, revela o grau de desgaste percebido pelos visitantes. Na política internacional, símbolos importam. E este simbolismo, infelizmente, jogou contra o Brasil.

No campo substantivo, a frustração foi igualmente profunda. O documento final, aprovado após negociações estendidas, foi descrito por observadores e por governos como “fraco” e “vago”, com compromissos pouco operacionais, lacunas centrais e ausência de uma rota clara para lidar com combustíveis fósseis. A crítica mais dura veio de países europeus e de Estados vulneráveis do Pacífico, que viram o texto como incapaz de acelerar a transição energética ou amarrar metas verificáveis. Em resumo: a COP amazônica terminou com um acordo que não fez jus ao que a Amazônia exigia e ao que o Brasil prometera liderar. 

Some-se a isso um constrangimento social que também vazou para a imprensa: Belém está entre as capitais com pior cobertura de coleta de esgoto do país. Dados do Instituto Trata Brasil apontam que a cidade coleta cerca de 20% do esgoto gerado e trata apenas uma fração mínima disso. É difícil vender protagonismo ambiental quando a cidade-sede, símbolo do evento, expõe ao mundo a precariedade do saneamento básico na Amazônia urbana. 

E como se não bastasse, surgiu ainda a sombra da desconfiança: entidades de controle social e imprensa apontaram riscos de superfaturamento e baixa transparência em contratos ligados às obras e serviços da COP30. A Transparência Internacional Brasil publicou alerta específico sobre a falta de dados claros, licitações sensíveis e o histórico de vulnerabilidade desse setor a corrupção, cobrando prestação de contas detalhada. Não é uma acusação fechada; é pior: é a reintrodução da suspeita. E suspeita, em política internacional, já é dano real. 

Não se trata aqui de negar os méritos da sociedade brasileira, nem de desconsiderar a potência ambiental que o país representa. Muito menos de atacar a Amazônia, patrimônio civilizatório que deveria nos inspirar responsabilidade e grandeza. Mas liderança internacional não se improvisa. Ela exige previsibilidade, competência administrativa, capacidade logística e sobriedade institucional. E nenhum desses elementos se mostrou presente de maneira consistente.

O saldo, portanto, é duro: a COP que deveria projetar o Brasil acabou expondo suas fraquezas. A vitrine virou espelho, e o reflexo não foi bom.

Há quem diga que “o importante é ter sediado”. Mas não é bem assim. O importante era ter liderado. Era ter aproveitado a chance para demonstrar capacidade, articulação e seriedade. Era ter mostrado ao mundo que o Brasil não é apenas guardião de uma floresta, mas também um ator confiável, preparado e tecnicamente competente para conduzir o debate climático global.

A Amazônia nos dá um lugar natural de destaque. Mas não garante liderança. Liderança se constrói. E, desta vez, ela escorregou pelas mãos.


Publicado originariamente no site Estadão

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