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A PEC 37 e a polícia imparcial

A Constituição de 1988 adotou um modelo processual penal chamado de “acusatório”. Esse modelo, hoje consagrado em quase todo o mundo, tem como caraterística principal a separação de funções dentro do processo criminal: acusação, defesa e julgamento. Seus princípios elementares são assim resumidos: “quem acusa não pode julgar”, “quem defende não pode julgar” e “quem julga não pode acusar nem defender”. Nesse quadro, o único sujeito verdadeiramente “imparcial” é o juiz; Ministério Público e réu (com seu advogado) são as partes do processo.

Na fase de investigação, que antecede o processo criminal propriamente dito, é absolutamente equivocado falar em "partes". Como qualquer outra espécie de investigação, inquérito policial não é processo. Não há acusador, nem acusado, nem julgamento. Partes só existem no processo.

O princípio que sustenta o modelo processual acusatório é o de que “quem acusa não pode julgar”. Nunca se afirmou, em nenhum outro país que adota o mesmo modelo, que “quem acusa não pode investigar”. Na verdade, no modelo acusatório, o princípio é justamente o oposto: quem acusa deve investigar (ou melhor, deve poder investigar, quando necessário). Quem acusa não pode fazer acusações levianas – ou seja, precisa de provas –, mas também não pode deixar de acusar apenas porque a polícia não fez bem o seu trabalho.

Ao alegar a "imparcialidade da polícia", talvez os defensores da PEC estejam utilizando a palavra "imparcialidade" no sentido leigo, de "isenção". Nesse caso, o defeito da alegação é ainda mais grave. Polícia isenta, no Brasil? É notório que nossas polícias, lamentavelmente, ainda ostentam elevados índices de desrespeito a garantias dos investigados e de violações a direitos humanos (não se pode dizer o mesmo do Ministério Público). Vejam-se, por exemplo, as notícias sobre grupos de extermínio Brasil afora. Além disso, por serem as responsáveis pela prisão em flagrante e por estarem na linha de frente da repressão ao crime, é particularmente tentador, para as polícias, o esforço para a confirmação da culpa daqueles que prenderam ou indiciaram – afinal de contas, caso seus investigados sejam inocentados, aquele que investigou poderá ser responsabilizado por eventuais abusos.

Nesse sentido, a imparcialidade (ou isenção) é um atributo muito mais evidente no Ministério Público. São muito comuns os casos de absolvição pedidos pelo próprio MP (no caso mensalão, três acusados foram absolvidos a seu pedido) e mais comuns ainda os casos de arquivamento da investigação – sempre pelo MP – por insuficiência de provas, mesmo contrariando as conclusões da polícia. Nos manuais de processo penal, costuma-se ensinar que o MP é uma “parte imparcial", precisamente por não estar vinculado à obrigação de pedir a condenação custe o que custar. A figura do promotor como "acusador implacável" está superada há muito tempo. O que move o Ministério Público é a promoção da justiça, seja para absolver, seja para condenar.

É sabido que as polícias brasileiras são muito pouco eficientes na solução de crimes (noutros países a resolutividade ultrapassa 90%; aqui, não chega a 10%). Tudo o que os brasileiros esperam é que seja ao menos diminuída a gritante impunidade em nosso país. Conferir exclusividade da investigação a apenas um órgão, a pretexto de uma suposta (e inexistente) imparcialidade, definitivamente não atende aos anseios da sociedade.

Bruno Calabrich é procurador da República no Distrito Federal, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais, professor da Escola Superior do Ministérios Público da União, membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura do Ministério da Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 29/04/2013.

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