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A PEC da Imunidade e a ofensa ao rule of law

O rule of law é um princípio constitucional básico que preceitua que todos os cidadãos, sem qualquer distinção, devem se submeter às leis vigentes de uma nação. Absolutamente ninguém pode estar acima da Constituição e leis de seu país. A isonomia de tratamento legal e judicial é o que justifica, sob o aspecto ético e pragmático, a proibição de qualquer tipo de privilégios, tendo a nossa Constituição logo em seu art. 3º, I, declarado ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil constituir uma sociedade livre, justa e solidária e o art. 5º, caput, deixa claro que nenhum brasileiro pode ter tratamento legal distinto, posto que todos são iguais perante a lei.

A Constituição Federal, por sua vez, para fazer cumprir outros valores igualmente caros à democracia conferiu garantias a certos ofícios, cargos ou funções cujo livre exercício se destina a dar sustentação à ordem constitucional. A liberdade de impressa, por exemplo, que é um valor fundamental para democracia constitucional, depende essencialmente que ao jornalista sejam garantidas: a) vedação da censura; b) ampla liberdade de informação e expressão e; c) incolumidade da fonte.

Essa prerrogativa especial dada ao jornalista não se caracteriza como privilégio exatamente porque tem como desiderato preservar um outro valor constitucional essencial para democracia, que é a liberdade de imprensa. O que distingui, pois, um privilégio, nocivo ao Estado Democrático de Direito, de uma prerrogativa é a existência ou não de um valor constitucional instrumental subjacente a preservar. Se a vantagem conferida não visa tutelar um bem constitucional, essencial ao estado democrático de direito, se trata de um privilégio, e como tal deve ser rechaçado e reprimido.

A prerrogativa, ao revés, conferida a certas categorias de pessoas é um instrumento de fundamental realce para fazer cumprir finalidades constitucionais, essenciais ao estado democrático de direito. A inamovibilidade e o princípio do juiz natural, previstos na Constituição Federal, têm, por exemplo, como objetivo essencial preservar a independência da magistratura contra influências externas odiosas que poderiam levar a remoção de um juiz de sua jurisdição para atender interesses de ocasião.

Em uma palavra, as prerrogativas visam proteger a Constituição e o Estado Democrático de Direito, os privilégios jamais. As prerrogativas atendem interesses de funções constitucionais, ao passo que os privilégios preservam interesses de pessoas. Estes, os privilégios, são acintosos exemplos de ofensa à equidade e conduzem ao rompimento do rule of law, conferindo vantagens inconstitucionais a categorias de pessoas em detrimento da Ordem Democrática. Cria supercidadãos que se apresentam acima da lei, imunes ao accountability e à responsabilização por práticas ilegais.

No dia 24 de fevereiro de 2021, sem qualquer debate ou sequer submeter ao crivo da Comissão de Constituição e Justiça, por 304 a 108 votos, a Câmara Federal admitiu o trâmite da Proposta de Emenda Constitucional número 03/2021, que entre outros aspectos, cria de forma notória diversos privilégios aos parlamentares federais, em ofensa evidente à isonomia, aos deveres de accountability e aos preceitos básicos do rule of law.
A PEC da imunidade, como está sendo conhecida, passa a permitir somente prisão de parlamentar em caso de flagrante por crimes considerados inafiançáveis pela Constituição Federal. Prevê também a proibição de qualquer medida cautelar conta parlamentar, inibindo seu afastamento do cargo, em clara ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição e da separação de poderes. Segundo a proposta admitida, na prática, se um parlamentar for flagrado cometendo atos de corrupção, estando, por exemplo, recebendo uma propina de milhões de reais que deveriam ser destinados ao combate à pandemia, é incabível a prisão, exatamente porque a

Constituição Federal não prevê como inafiançável qualquer crime contra Administração Pública.

Além de impossível a prisão nesses casos, somente quem poderia afastar cautelarmente o parlamentar seria a respectiva casa legislativa, uma vez que estaria absolutamente vedado, doravante, ao judiciário apreciar esse pedido.

Um senador, por exemplo, que cometer violência doméstica contra sua companheira e filhas, lesionando-as e ameaçando-as gravemente de morte, jamais poderia ser preso ou se submeter às medidas de proteção previstas na lei, nem muito menos afastado das funções por decisão judicial.

Um parlamentar que eventualmente seja surpreendido embriagado ao volante logo após matar culposamente uma família que estava numa parada de ônibus estará imune a qualquer medida que limite sua liberdade. Sequer uma medida judicial de apreensão da CNH poderá ser determinada.

A decisão judicial proferida conta a Deputada Federal Flordelis, em face de quem pesa a acusação de ter matado dolosamente o cônjuge e em razão da qual foi afastada do cargo e obrigada a usar tornozeleira eletrônica, caso a PEC seja aprovada, deverá ser reformada para readmiti-la ao exercício da função, além de excluir o monitoramento. Serão mínimas as chances de algum parlamentar no Brasil vir a ser preso ou afastado, uma vez que a Constituição Federal somente prevê como inafiançáveis os crimes de tortura, o tráfico de entorpecentes, o terrorismo, ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o racismo. A rigor, nem a prática de crimes hediondos cuja tipificação é infralegal poderia conduzir um parlamentar à prisão.

A prisão preventiva no Brasil praticamente deixa de ser possível contra um parlamentar pois, segundo a PEC, essa hipótese estaria destinada exclusivamente aos casos de conversão do flagrante por crimes inafiançáveis a ser definida em uma audiência de custódia, após homologação pelo plenário da respectiva casa legislativa. Portanto, segundo a PEC, a lavratura da prisão em flagrante contra um deputado ou senador em face da prática de crime inafiançável, previsto na Constituição Federal, deverá ser homologada pelo plenário da respectiva casa legislativa. Após a homologação, a prisão em flagrante deverá seguir para uma audiência de custódia promovida pelo STF que analisaria se o caso seria de conversão em prisão preventiva. Além de excepcional, a prisão de um parlamentar passou a ser notoriamente burocrática.

A par dessas limitações constitucionais, a PEC nº 3/2021 traz insuperáveis dificuldade às investigações contra parlamentares, já que impõe ao STF a competência exclusiva para análise das medidas cautelares de busca e apreensão. Portanto, caso um parlamentar esteja sendo investigado por um promotor de justiça diante de possíveis “rachadinhas” (crime de peculato previsto no art. 312, do CP) praticadas antes do exercício da função federal, o eventual pedido de busca e apreensão deverá ser realizado e analisado perante o STF, tornado a investigação muito mais lenta, burocrática e desestimulante.

Está claro que sob o sofisma de defesa da independência parlamentar, a PEC 3/2021 rompe os princípios básicos do rule of law, tornando praticamente impossível a prisão de parlamentares federais no Brasil, além de restringir as atividades dos órgãos de investigação.

Cria-se um regime constitucional de exceção, tornando ainda mais distante o foço que há entre o direito penal dos descamisados e os de colarinho branco. Não se está aqui inaugurando ou reforçando prerrogativas parlamentares, mas sim admitindo inacreditáveis privilégios particulares em favor de uma casta política cada vez mais distante dos ditames do rule of law, exatamente porque tais alterações em nada se destinam a preservar valores ou bens de natureza constitucionais. Cuida-se de uma PEC que promove a desigualdade, o desrespeito com o cidadão, quebra os deveres de accountability e estimula, de forma acintosa, ainda mais a prática de crimes e a impunidade no país.

* Fernando Rocha de Andrade é Procurador da República e especialista em ciências criminais.

** Artigo publicado originalmente no Estado de São Paulo

 

 

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