A Constituição de 1988 não apenas declarou direitos fundamentais, mas conferiu a eles o peso normativo necessário para que as políticas públicas correspondentes à sua efetivação sejam desenhadas e concretizadas.
Assim, não bastam meras exortações ao cumprimento do texto, já que o gestor tem o dever de implementar, na maior medida possível, os direitos econômicos, sociais e culturais, por meio da estruturação de órgãos, instituições e procedimentos que viabilizem o projeto constitucional.
No campo socioambiental, o art. 225 da Constituição conferiu destaque ao tema, o que favoreceu o desenvolvimento, nos últimos 30 anos, de uma trajetória legal e institucional de compromisso com o desenvolvimento sustentável.
Nesse período, o Brasil estabeleceu marcos normativos e organizou a Administração Pública em favor de uma atuação modelo nesta pauta. Ainda que pudesse haver diferenças quanto às linhas de gestão no governo federal desde a redemocratização, o compromisso com o meio ambiente sempre foi uma diretriz.
A partir de janeiro 2019, assistimos a um projeto com sinal trocado. Ações, omissões, práticas e discursos têm promovido o esvaziamento das políticas ambientais e a fragilização do arcabouço normativo e organizacional de sustentação da tutela protetiva ao meio ambiente.
Após apuração, o Ministério Público Federal (MPF) propôs ação de improbidade administrativa em face do Ministro do Meio Ambiente, na qual aponta a responsabilidade do referido agente público pela desestruturação dolosa da proteção ao meio ambiente no âmbito federal.
A ação enfatiza que está em curso um desmonte doloso da estruturas de proteção ao meio ambiente, que pode ser demonstrado, de forma didática, por quatro formas de destruturação: (i) desestruturação normativa; (ii) desestruturação dos órgãos de transparência e participação; (iii) desestruturação orçamentária e (iv) desestruturação fiscalizatória.
O MPF destaca que os atos praticados pelo ministro podem parecer, à primeira vista, um exercício regular de discricionariedade administrativa. Contudo, eles devem ser lidos de forma concatenada, inseridos em um processo de desestruturação, realizado em várias frentes, de forma a fragilizar a atuação estatal na proteção do meio ambiente.
A desregulamentação de medidas proibitivas, a desmobilização de servidores e o desmonte da fiscalização compõem um conjunto ordenado. Nesse ponto, há várias práticas indicativas de desvio de finalidade na gestão ambiental, tais como: i) a exoneração de servidores engajados de cargos de chefia; ii) o esvaziamento da participação da sociedade civil no Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama); iii) a alteração de atos normativos para impor uma proteção menor a unidades de conservação e áreas de proteção; e iv) a diminuição do orçamento.
O enfraquecimento do Conama é emblemático quanto ao roteiro de desestruturação. Em um primeiro momento, houve a redução dos espaços de participação democrática e da representatividade social no Conama, pelo Decreto nº 9.806, de 28 de maio de 2019.
Na sequência, nesse quadro de disparidade representativa, promoveu-se a revogação de três resoluções de uma só vez, deixando desprotegidas áreas de manguezais e restingas e entornos de reservatórios d’água, e em situação de anomia regulatória o licenciamento de empreendimentos de irrigação fragilizando a proteção dos recursos hídricos.
O STF já reconheceu tais violações, tendo a relatora ministra Rosa Weber cosignado a “impressão da ocorrência de efetivo desmonte da estrutura estatal de prevenção e reparação dos danos à integridade do patrimônio ambiental comum” (ADPFs 747, 748 e 749).
As desestruturações orçamentária e fiscalizatória, por sua vez, impactam diretamente as atividades de fiscalização. Enquanto o desmatamento aumentava, houve redução orçamentária da ação programática de controle e fiscalização ambiental em 25% para 2020. Além disso, houve a inativação do Fundo Amazônia, deixando sem uso recursos na ordem de 1,6 bilhão de reais, em franco prejuízo à preservação do Bioma Amazônico.
Orçamento reduzido, nomeações de chefias sem critérios técnicos e exoneração de servidores em plena atividade fiscalizatória acarretaram o enfraquecimento da dimensão organizacional fiscalizatória e das capacidades institucionais e operacionais dos órgãos incumbidos da política de proteção ao meio ambiente.
Com a derrubada dos pilares que sustentam a atuação fiscalizatória, os efeitos no aumento do desmatamento e das queimadas são visíveis.
No caso do desmatamento da Amazônia, os dados mostram que os efeitos da omissão deliberada na gestão ambiental são imediatos, podendo tornar-se irreversíveis[1]. Entre 2009 e 2018, índice médio de corte raso da Floresta Amazônica sofreu uma drástica diminuição, tendo atingido o mínimo em 2012. Em 2019, houve aumento bastante significativo.
Segundo dados do Sistema PRODES,[2] entre agosto de 2018 e julho de 2019 cerca de 10.300 km² da Amazônia Legal foram postos abaixo e entre agosto de 2019 e julho de 2020 a área desmatada na Amazônia correspondeu a 11.088 km². Trata-se dos dois maiores índices de desmate dos últimos dez anos.
A ação descreve que, em diversas frentes de atuação, o ministro agiu de forma concreta para inviabilizar a adequação da política nacional do meio ambiente aos textos constitucional e infraconstitucional.
Atos e medidas aparentemente corriqueiros foram utilizados com o propósito de favorecer, em seu conjunto, uma fragilização das políticas de preservação, conservação e utilização sustentável de ecossistemas, biodiversidade e florestas.
Com isso, a estrutura do ministério foi direcionada para o enfraquecimento de suas atribuições, diminuindo a importância da pauta para o Estado brasileiro, o que foi expressamente admitido em declarações e amplamente divulgado no vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. “Passar a boiada” passou a ser a diretriz oficial, em clara afronta aos requisitos legais e aos deveres funcionais do titular da pasta.
Ao praticar atos de desmonte das estruturas de proteção ao meio ambiente, a ação conclui que o ministro atentou contra os princípios da eficiência, moralidade, legalidade e da lealdade às instituições, incidindo na prática de ato de improbidade administrativa descrito no art. 11 da Lei nº 8.429/92.
Houve uma atuação concreta para inviabilizar que a política nacional do meio ambiente fosse constitucionalmente adequada. A estrutura do ministério foi direcionada para o enfraquecimento de suas atribuições, diminuindo a importância da pauta para o Estado brasileiro e futuras gerações.
Como já alertou o STF na decisão liminar da ministra Rosa Weber nas ADPFs 747, 748 e 749, “[a] atuação positiva do Estado decorre do direito posto, não havendo espaço, em tema de direito fundamental, para atuação discricionária e voluntarista da Administração, sob pena, inclusive, em determinados casos, de responsabilização pessoal do agente público responsável pelo ato, a teor do art. 11, I, da Lei nº 8.429/1992”.
A urgência na defesa do meio ambiente impõe uma resposta célere do Poder Judiciário na contenção da erosão em curso das instituições ambientais. O reconhecimento da improbidade administrativa dos gestores é um passo fundamental, de modo a não repetir novas violações e assegurar a proteção socioambiental e a credibilidade do compromisso do Estado brasileiro na matéria.
Referências
[1] Gráfico produzido pelo INPE, disponível em: <http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/legal_amazon/increments>. Acessado em 02 de julho de 2020.
[2] PRODES é um sistema de monitoramento por satélite de áreas desmatadas a corte raso. Os dados publicados consolidam o desmatamento verificado entre Agosto de um ano a Julho do ano seguinte, o ano em que há a publicização. O sistema é utilizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), entidade pública federal vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
* Artigo publicado originalmente no site Jota