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A rodovia transamazônica e os indígenas tenharim: ontem e hoje

Prédios públicos da FUNAI e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) foram destruídos, indígenas tiveram sua integridade física ameaçada, aldeias foram atacadas e por muito pouco não houve um genocídio.

O que se viu, dali em diante, paralelamente às investigações criminais em curso, foi mais uma ofensiva contra os povos indígenas de todo o país. Desde o discurso de ódio até a crítica feroz às demarcações de terras, o caos instalado em Humaitá serviu à plataforma daqueles que defendem a subtração de direitos dos grupos minoritários em favor de um progresso que não contempla o direito a ser diferente.

É curioso, porém, que tanto o conflito em questão como o discurso anti-indígena, fundados numa lógica de desenvolvimento econômico, remontam ao projeto de construção da Rodovia BR-230, a chamada transamazônica, durante a ditadura civil-militar. O lema era o de levar “os homens sem terra para uma terra sem homens”, promovendo a integração nacional e a ocupação da região norte do país, notadamente da Amazônia, estimulando-se a colonização pela população de outras regiões que não possuísse terras, sobretudo da região Nordeste¹.

A rodovia cruzou o território tradicional do povo tenharim e causou impactos profundos na vida dos indígenas. Durante a obra, a atuação pacificadora das frentes de atração da FUNAI buscou impedir hostilidades dos indígenas e permitir o avanço de tratores, operários e ações de desmatamento sobre a região. Com o contato forçado, os danos foram imediatamente sentidos, sobretudo os de natureza ambiental e sociocultural.

Em entrevistas e reuniões promovidas pelo Ministério Público Federal em junho de 2013, colheram-se relatos sobre o sentimento dos indígenas em relação àquela construção, especialmente em razão do contato interétnico com os trabalhadores operários, as epidemias trazidas por estes e o deslocamento forçado de roças e cemitérios indígenas, com alterações nos modos de vida dos tenharim.

Em um dos depoimentos, o cacique da aldeia Bela Vista, Manoel Duca, de 52 anos, afirma que os tenharim tinham muito medo dos trabalhadores da rodovia: “Só tinham três que representavam o povo, e o resto [estava] escondido no mato”. Afirma que “a empresa pegou a gente para fazer desmatação”, dizendo “olha aqui o machado, índio: vai abrir a estrada!” Derrubavam as árvores até mesmo dentro d'água, tendo trabalhado um ano de graça “no cabo do machado” até a localidade Matamata, à margem do rio Aripuanã. O empregados das empreiteiras apenas diziam para os índios nas aldeias: “Sai da frente!” Comiam pouco entre os turnos de trabalho: “Eles mandavam em nós que nem preso; quatorze pessoas. A alimentação cultural, as frutas que tinham na frente [do traçado da estrada], nós perdemos. Ficaram com as redinhas de algodão que fazíamos naquele tempo²”.

Os danos podem ser sentidos até hoje, fruto do estabelecimento de um contato interétnico obrigatório, com a destruição de lugares sagrados, a constante presença da sociedade envolvente naquele território e o frequente interesse nas riquezas ali existentes. Além disso, o assédio a essas terras se diversificou, em razão de madeira, minérios e produção agrícola.

Ante a falta de proteção ao território indígena e a omissão do Poder Público, a conclusão a que se chega é que, a despeito das diretrizes constitucionais, a compreensão do governo brasileiro acerca da matéria não tem sido muito diferente daquela adotada no regime autoritário, com uma sentença bem clara: a causa indígena seria um empecilho ao crescimento (econômico).

Nesse contexto, a expansão da fronteira agropecuária e da extração da madeira clamam por limites menores da terra indígena e pelo não impedimento à circulação de mercadorias. Para tanto, o discurso de ódio, que idealiza propostas como o isolamento dos indígenas, a sua “retirada das margens da estrada” e a expulsão dos tenharim das escolas dos “brancos”, entre outras coisas, mostra-se conveniente. Para a história não se repetir - em Humaitá, aqui e acolá -, é bom relembrar.

1. As obras tiveram início em 09 de outubro de 1970, data em que foi descerrada placa em Altamira pelo então presidente Emilio Garrastazu Médici com o seguinte teor: “Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o senhor Presidente da República dá início à construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde”.

2. Extraído do “Relatório de avaliação atual dos tenharim (kawahiwa) do rio Marmelos, Estado do Amazonas”, elaborado pelo antropólogo e analista pericial do MPF Walter Coutinho Junior.

Julio José Araújo Junior é procurador da República no Amazonas (PR/AM).

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