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A tipificação do terrorismo

José Robalinho Cavalcanti e Vladimir Aras**

No momento em que o mundo presencia consternado duas ações terroristas de escala global, tem o Brasil a oportunidade de fazer muito mais do que simplesmente lamentar esses dois trágicos eventos. No final de outubro, um avião russo foi destruído na Península do Sinai. Todos os 224 passageiros morreram. Na última sexta-feira 13, o terror se abateu sobre Paris, um dos berços da civilização ocidental e das liberdades públicas: mais de 120 pessoas, de 28 nacionalidades foram mortas em ataques coordenados por terroristas.

Devido à pressão internacional, notadamente do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), está na pauta do plenário da Câmara dos Deputados, para última votação, em regime de urgência, projeto de lei que, finalmente, tipificará o crime de terrorismo no Brasil.

Apesar de o repúdio ao terrorismo estar listado na Constituição de 1988 como um dos princípios que orienta o Brasil na relação com as demais nações, e a despeito de haver mandamento expresso no texto da Carta Magna para que seja tipificado o crime de terrorismo, o país está em mora há 27 anos. Se levarmos em conta os cerca de quinze tratados antiterrorismo, o primeiro em vigor desde os anos 1970, dos quais o Brasil é parte, já serão mais de quatro décadas de inadimplência. A realidade global do terrorismo internacional não admite mais este desleixo; a comunidade internacional não mais tolera o descumprimento de obrigações que assumimos perante outras nações. O Brasil estará sujeito a crescentes sanções internacionais se não cumprir, de imediato, a obrigação de tipificar os crimes de terrorismo e seu financiamento.

E por que isso é necessário? O mundo está cada vez menor. Fronteiras não são garantia de segurança. As interações da economia global, a facilidade dos transportes, das comunicações, do trânsito de pessoas e de mercadorias e da movimentação de valores, todos esses fatores de desenvolvimento humano prestam-se ao bem; servem também ao mal. Nenhum país é uma ilha. Atentados podem ser planejados num ponto do globo e executados noutro, com financiamento a partir de uma terceira localidade do planeta. Foi assim na França em 2015; foi assim nos Estados Unidos em 2001. Antes fora assim na Munique de 1972.

Ademais, o Brasil pediu, e, mercê de sua importância para o mundo, ganhou o direito de organizar e sediar o maior evento esportivo do planeta, os Jogos Olímpicos, que terão lugar no Rio de Janeiro em 2016. Como os ecos dos atentados de Munique em 1972 bem demonstram, quem assume esta responsabilidade traz para si, em conjunto com os milhares de atletas e turistas de mais de duzentas nações, todos os conflitos do mundo, e tem a obrigação de zelar pela segurança de cada um de seus convidados e de todos os jogos e competições. O Brasil não estará pronto para este desafio sem sua legislação antiterror e sem melhor estruturação dos órgãos nacionais que atuam em contraterrorismo e antiterrorismo, como a Polícia Federal, as Forças Armadas, a Agência Brasileira de Inteligência, a defesa civil, o Ministério Público Federal e o Ministério Público Militar. O temor de atentados em praças esportivas foi reavivado agora, mais uma vez, em Paris, pela ação de homem bomba no amistoso entre as seleções da França e da Alemanha. Quantas vidas teriam sido perdidas, se o petardo houvesse explodido no interior do Stade de France.

Neste contexto e diante dos eventos de Paris da sexta-feira, 13 de novembro, é importante lembrar que já está em vigor desde dezembro de 2014 o Arms Trade Treaty (ATT). Esse tratado visa a regular o comércio internacional de armas convencionais e suas munições e prevenir o contrabando. Atualmente, 73 Estados estão vinculados ao ATT. Na América do Sul, são partes Argentina, Paraguai, Uruguai, e também a França (Guiana Francesa) e a República Cooperativa da Guiana. Dentre os Estados Partes do Mercosul, Brasil, Chile, Colômbia e Peru (e também o Suriname) já assinaram o tratado sobre comércio de armas mas ainda o não ratificaram, sendo certo que o controle de armas de fogo, leves ou pesadas – como aquelas usadas em solo francês – é fundamental para reduzir o poder de organizações criminosas violentas e também de entes terroristas. A necessidade de ratificar e cumprir o ATT é premente para o Brasil, dado o inegável fato de que por nossas fronteiras – muito porosas – têm passado clandestinamente armas de fogo, mesmo de grosso calibre, com destino às maiores cidades brasileiras.

Obviamente ninguém imagina – nem nós – que uma lei ou um tratado vá nos proteger da insanidade impensada, da crueldade refletida ou do extremismo sem controle. Mas a falta de legislação antiterror deixa desprotegidos bem jurídicos fundamentais e incapacita o Estado brasileiro a reação jurídica dentro de suas fronteiras ou no plano da cooperação internacional. A lacuna legislativa também deixa patente o desleixo com a estratégia nacional antiterrorismo e de contraterrorismo, nos planos da prevenção e da inteligência. A tipificação do crime de terrorismo e seu financiamento é um primeiro passo. Depois, será preciso fortalecer as estruturas da Polícia Federal, do Ministério Público, do Exército Brasileiro e das demais forças de segurança, de inteligência e de defesa civil para que todos esses órgãos estejam aptos a reação imediata em caso de crise e que também estejam habilitados a lidar com informações de inteligência, de forma rápida, com o fim de sufocar ameaças terroristas e rastreá-los.

Evidentemente, na construção dessa política e na estruturação do sistema brasileiro de prevenção e repressão ao terrorismo, não podemos ceder à tentação de cercear direitos fundamentais ou de limitar liberdades públicas. Uma das mais insidiosas consequências do terrorismo é o medo. O medo faz surgir sentimentos de autocontenção e de privação no exercício dessas liberdades. Por outro lado, os Estados tendem a avançar sobre garantias fundamentais, com o pretexto, falso ou verdadeiro, de que é necessário lutar contra o fenômeno do terrorismo. O resultado é um só: restrição de garantias individuais, abalo às liberdades democráticas, retrocesso constitucional.

Por isso, no contexto brasileiro, esse avanço normativo primordial tem de ser obtido. No presente estágio, no que diz respeito ao projeto de lei de tipificação do terrorismo, há duas redações que podem ser chanceladas pelo Legislativo, antes da sanção presidencial: uma que foi originalmente aprovada pela Câmara dos Deputados em agosto; outra que foi aprovada pelo Senado Federal, em outubro, como casa revisora. Ambas trazem progressos, já que buscam cumprir os compromissos convencionais do País e atender ao comando constitucional, mas é inegável que a versão do Senado para o projeto de lei 2016/2015 aperfeiçoou o texto produzido no debate anterior na Câmara e, por isso, devia prevalecer como redação final. Em seguida melhor se explicita este ponto porque isto se impõe.

Nos limites estreitos deste artigo, focaremos nossa atenção no núcleo de ambos os projetos (o original da Câmara e o substituto do Senado). No centro do debate está o artigo 2º do texto, que tipifica o crime de terrorismo. Em sua redação final, a Câmara dos Deputados optou por criminalizar apenas os atos praticados por motivação de xenofobia (aversão ou ódio a estrangeiros), discriminação ou preconceito. Em uma das últimas versões levadas a voto, o substitutivo do relator, deputado Artur Maia, previa ainda como passível de enquadramento como terrorista ato com finalidade de provocar terror social ou generalizado e objetivo político. A motivação política, todavia, não sobreviveu na redação final, sob argumento de ser muito aberta, vale dizer, por supostamente incluir no seu escopo atos legítimos de protesto.

A redação da Câmara ficou assim bem aquém do desejável, resultando num tipo de terrorismo que trará – se aprovado – dificuldades intransponíveis aos agentes da persecução criminal para abranger condutas que são consideradas terrorismo noutras jurisdições, especialmente em países ocidentais.

No direito penal, por princípio, a interpretação que deve prevalecer é sempre a mais favorável ao réu. Não havia necessidade de exigir no tipo de terrorismo motivos ou razões para a ação. Muitos países identificam o ato terrorista como aquele praticado com o especial fim de agir de provocar pânico generalizado ou terror. Sendo diversa a opção dos legisladores brasileiros, tais motivos têm de ser abrangentes, para cobrir todas as hipóteses de condutas terroristas, em suas motivações intrínsecas. Na Câmara dos Deputados, a motivação política do crime foi retirada do texto na undécima hora. Assim, se um ato de terrorismo por extremismo político não puder enquadrado, clara e objetivamente, como motivado por xenofobia, discriminação ou preconceito, a conduta será atípica, no contexto da lei antiterror, ainda que tenha provocado temor generalizado na população.

Quando o grupo extremista Setembro Negro invadiu a vila olímpica de Munique em 1972, para eliminar atletas israelenses, não agiu por qualquer das razões elencadas no projeto de lei brasileiro. Todavia, ninguém contesta que o atentado nas Olimpíadas foi terrorismo. Igualmente não foi por xenofobia ou por discriminação ou por preconceito que a Al Qaeda atacou os Estados Unidos em 2001. A prevalecer a redação da Câmara dos Deputados – lembrando que normas penais devem ser interpretadas estritamente pelo julgador – não seria possível imputar o crime de terrorismo a Bin Laden e seus áulicos, se semelhante conduta tivesse sido perpetrada no Brasil.

A derrubada do jato russo no Sinai e os dois atentados cometidos em Paris neste ano de 2015 – seja o ataque ao jornal Charlie Hebdo em janeiro, sejam os sangrentos eventos da sexta-feira, 13 de novembro – não podem ser atribuídos a “aversão a estrangeiros” ou a discriminação. Foram universalmente considerados como atos de terrorismo, pelo seu inegável objetivo de provocar terror na população, paralisar a sociedade e constranger instituições do Estado. Mas, no Brasil, se aprovado o projeto tal como se deu na primeira passagem na Câmara dos Deputados, essas condutas poderiam ser enquadradas como homicídios, mas não como atos de terrorismo. Seria difícil justificar esta deficiência perante as vítimas e a comunidade internacional e continuaria configurado o descumprimento de obrigações constitucionais e convencionais do Brasil.

Pois bem, o Senado Federal parece ter encontrado uma melhor redação para o crime de terrorismo. O substitutivo aprovado pela casa revisora aumentou a abrangência das condutas, introduzindo no tipo a motivação política que foi debatida nas diversas etapas da tramitação do projeto na Câmara dos Deputados, com uma definição, porém, mais fechada e precisa. O projeto também passou a conceituar “motivação política”, para evitar confusão com condutas lícitas numa democracia.

Assim, na redação que lhe deu o Senado, o projeto define o crime de terrorismo como sendo qualquer ação que tenha como especial fim a provocação de terror generalizado, por motivo de xenofobia e discriminação – como quis a Câmara –, mas também por extremismo político. Eis redação suficiente para permitir o enquadramento legal de atentados como os de Munique (1972), Nova Iorque (2001), Madrid (2004) e Paris (2015) e dos ataques do Boko Haram, na Nigéria, por exemplo.

Definiu o Senado que extremismo político é o ato que atenta gravemente contra o estado democrático e a estabilidade das instituições. Eis um conceito objetivo e adequado, que afasta os temores que levaram a Câmara dos Deputados suprimir a ação com razão política do rol das hipóteses do terrorismo. Não seria qualquer ação política violenta que poderia ser enquadrada como terrorismo, e sim o extremismo político, quando voltado contra a democracia ou as instituições democráticas. Tais fatores afasta m qualquer possibilidade de que atos reivindicatórios, protestos populares e conflitos políticos ordinários possam ser enquadrados como terror.

A redação dada pelo Senado ao projeto de Lei 2016/2015, portanto, é um aperfeiçoamento bem-vindo, que dá utilidade ao tipo em questão, para que sirva de instrumento para persecução penal.

A redação do Senado tem sido criticada por ter retirado do projeto a cláusula expressa que exclui do enquadramento como crime de terrorismo os atos de reivindicação. Esta cláusula nunca foi de fato necessária, pois movimentos sociais, ainda quando em conflito com a lei, não pretendem agir nem agem para provocar terror social, razão pela qual suas ações já estavam excluídas desde sempre. Com a devida vênia, esta é uma falsa questão.

Ainda assim, poderia o Senado ter mantido esta cláusula – que pode ser reinserida em projeto posterior –, em respeito a legítimas preocupações políticas de que a legislação antiterror não seja usada para repressão interna de qualquer nível.

Contudo, este temor – o qual, apesar de respeitável, não é tecnicamente considerável –, encontra ainda menor razão de ser na redação dada pelo Senado Federal, na medida exata em que, como visto, não é mais qualquer ação com razão política que pode ser taxada como terrorismo (como consta na redação da Câmara dos Deputados, e tal como justificava a cláusula de exclusão), e sim o “extremismo político”, motivação definida em termos que não permitem qualquer identificação com ações de movimentos sociais.

Com a finalização dos debates no Congresso Nacional e a iminente aprovação do projeto que tipifica o crime de terrorismo, o mundo espera o resgate de uma dívida brasileira de quatro décadas. Neste cenário, é jurídica e politicamente mais adequado o substitutivo do Senado.

O conceito de “extremismo político” como razão alternativa para o crime de terrorismo é adequado, e necessário, pois afasta os temores de enquadramento de movimentos sociais, ao mesmo tempo em que permite a ação e persecução criminal do Estado contra o terrorismo moderno. Será decepcionante se, depois de todo este esforço, a lei aprovada deixar escapar do enquadramento típico como terroristas atos como que os ocorreram em Paris, o que será inevitável se o elenco de razões limitar-se a xenofobia ou discriminação.

Está na hora de avançar.

**Artigo publicado no portal Jota, no dia 23 de novembro de 2015

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