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Ação penal e os limites da jurisdição

* Galtiênio da Cruz Paulino

Recentemente, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento de agravo regimental apresentado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), reformou decisão proferida pelo então relator da ação penal discutida, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que desclassificou, após toda a instrução processual, o crime de peculato que havia sido imputado ao presidente do Tribunal de Contas do Estado do Acre, Ronald Polanco Ribeiro, para a incidência do art. 313 do Código Penal, tendo, em seguida, decretada a extinção da punibilidade[1].

No referido julgamento, a maioria dos ministros integrantes da Corte Especial entenderam que uma decisão monocrática não tem o condão de desclassificar a tipificação criminal de denúncia já recebida e instruída pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça.

Diante dessa decisão, como fica a questão da emendatio libelli e da mutatio libelli?

O Código de Processo Penal prevê no art. 383[2] a figura da emendatio libelli e no art. 384 a mutatio libelli[3]. O primeiro caso envolve uma possível alteração da classificação delitiva atribuída ao fato enquadrado como criminoso. Os fatos continuam sendo os mesmos, apenas se atribui uma tipificação diversa. Na mutatio libelli, há uma alteração da narrativa fática apresentada pela acusação, em razão de ter sido constatado, ao longo da instrução, que a realidade fática é diversa da que foi apresentada.

Na emendatio libelli, a alteração pode ser feita pelo juiz. Já no caso da mutatio libelli, compete ao Ministério Público, após o fim da instrução, aditar a inicial.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a emendatio libelli só poderá ser realizada pelo órgão responsável pelo processamento e julgamento da ação penal originária no tribunal, no caso a Corte Especial, em razão da previsão normativa do art. 11 do Tribunal[4].

O relator, em um processo penal de competência originária do Superior Tribunal de Justiça, atua apenas como impulsionador da marcha processual, que é retirada do âmbito de competência da Corte Especial, cabendo a esta (Corte Especial) os atos decisórios de caráter definitivo, como é o caso do recebimento da denúncia e do acórdão condenatório ou absolutório. Desse modo, também competirá à Corte Especial analisar eventual emendatio libelli, pois resulta em uma discussão meritória da decisão de recebimento da denúncia.

Com a mutatio libelli não é diferente. Caso o Ministério Público, após o fim da instrução, entenda que a inicial deve ser aditada, o aditamento deverá ser submetido ao crivo da Corte Especial.

E em caso de declínio de competência após o recebimento da denúncia, poderá ocorrer emendatio libelli e/ou mutatio libelli?

Perfeitamente possível. Com o declínio da competência, ocorre o fim da jurisdição do Superior Tribunal de Justiça. Por conseguinte, a classificação típica ou conclusão fática estabelecida pela Corte Especial do Tribunal não vincula o juízo que receberá o caso, sob pena de extrapolação jurisdicional e, consequentemente, cerceamento do direito do juízo e do Ministério Público quanto a incidência da emendatio libelli e/ou mutatio libelli.

[1] Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/stj-anula-decisao-que-desclassificou-crime-de-peculato-cometido-pelo-presidente-do-tribunal-de-contas-do-acre>.

[2] Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 1º Se, em conseqüência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 2º Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

[3] Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 1º Não procedendo o órgão do Ministério Público ao aditamento, aplica-se o art. 28 deste Código. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 2º Ouvido o defensor do acusado no prazo de 5 (cinco) dias e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 3º Aplicam-se as disposições dos §§ 1oe 2o do art. 383 ao caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 4º Havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até 3 (três) testemunhas, no prazo de 5 (cinco) dias, ficando o juiz, na sentença, adstrito aos termos do aditamento. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 5º Não recebido o aditamento, o processo prosseguirá. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

[4] O regimento interno do Superior Tribunal de Justiça estabelece no art. 11, inciso I, que compete à Corte Especial art. 11. Compete à Corte Especial processar e julgar: I – nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que ofi ciem perante Tribunais;

Galtiênio da Cruz Paulino – Formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, mestre pela Universidade Católica de Brasília e doutorando pela Universidade do Porto. Possui pós-graduação em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp. Orientador pedagógico da ESMPU. Ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República. No MPF, foi membro-auxiliar do procurador-geral da República na Secretaria da Função Penal Originária no STF, entre 2018 e 2019, e atualmente é membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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