O avanço sobre as terras indígenas tem recrudescido nos últimos tempos das mais diversas maneiras. As demarcações foram paralisadas, a grilagem, o desmatamento ilegal e as invasões por garimpeiros aumentaram exponencialmente, consoante o que foi amplamente divulgado na imprensa. Ainda, algumas autoridades falam abertamente sobre redução de terras indígenas, tema que foi até objeto de pesquisa do Datafolha em dezembro de 2018. Na mesma linha está o Mandado de Segurança 26.853, em trâmite no STF (Supremo Tribunal Federal), impetrado pelo município de São Félix do Xingu e por produtores rurais, que contesta limites da terra indígena Apyterewa-Parakanã, mesmo ante o trânsito em julgado de ação judicial que aferiu a legalidade da demarcação, trazendo à baila a possibilidade de acordo para a revisão de limites de terra indígena com demarcação concluída. Tal hipótese ocasionaria a redução significativa da terra indígena demarcada e poderia criar precedente inédito, com efeitos deletérios incalculáveis sobre as terras indígenas.
A Constituição estabelece, no artigo 231, que os indígenas têm direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, que são bens da União, com posse e usufruto exclusivo dos indígenas. Ainda, diz que as terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. Este é o ponto central na questão jurídica em tela: a norma constitucional estabelece que nem o governo e nem os próprios indígenas podem alienar, ceder, transigir, renunciar ou fazer quaisquer outras disposições dessa natureza com as terras indígenas. Ainda, a Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais de 1989 impõe aos governos a salvaguarda dos territórios integrais, observando as atividades tradicionais e de subsistência, considerando a utilização ampla, que deve incluir também os locais sagrados e não apenas a parte fisicamente visível da ocupação, a única considerada pelos preceitos ocidentais.
A vedação constitucional de disposição e alienação de terras indígenas é de enorme importância, pois a existência presente e futura desses grupos étnicos dela depende, dada a relação umbilical dos indígenas com o território, que se veem pertencendo ao lugar e não como os seus proprietários, como professam as nossas concepções cultural e jurídica tradicionais. Não há como dissociar o direito aos territórios indígenas dos direitos humanos fundamentais, do direito à dignidade e à própria existência dos povos indígenas, direitos que sequer por emenda constitucional podem ser suprimidos. “Temos o direito de viver em paz na nossa própria casa. Na floresta estamos em casa”, diz Davi Kopenawa.
As terras indígenas destinam-se permanente e integralmente à posse e ao uso tradicional de todos os integrantes do grupo étnico, e, inclusive, às gerações futuras, de modo que sua alienação e disposição, além de juridicamente vedadas pela Constituição e por normas internacionais vigentes, há de se contextualizar a eficácia da manifestação de líderes indígenas para disporem das terras que pertencem a todo grupo e até aos que ainda não nasceram.
Sobre este último aspecto, da eficácia ou do significado da representação indígena por caciques ou líderes, é comum que não-indígenas simplifiquem a natureza dessa representação, pois baseados nas demandas e nos modelos representativos usuais da sociedade ocidental, que colidem com modelos políticos ameríndios. Os indígenas, como é amplamente atestado pela literatura antropológica e por narrativas deles próprios, convivem ancestralmente com lideranças de distintos graus de estabilidade e de natureza, inclusive, com ampla recusa política, filosófica e jurídica à hierarquia e à representação totalizante, como expõe o conhecido antropólogo Pierre Clastres no livro “A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política”. Em alguns casos, sabe-se que as lideranças indígenas são construídas e empoderadas mais pelos interesses de pessoas de fora das aldeias do que pela legitimação e interesses dos próprios povos. Aliás, nada estranho ao que sempre ocorreu e ocorre o tempo todo na sociedade ocidental, quando algumas lideranças políticas, na prática, defendem seus próprios interesses ou interesses de alguns aliados .
Evidencia-se mais uma vez a velha conhecida e juridicamente inaceitável tentativa de integrar os indígenas, fazendo-os perder tudo aquilo que os torna únicos
O constituinte foi sábio ao vedar a disposição das terras indígenas. A norma constitucional está no âmago do rompimento com o antigo, equivocado e superado modelo assimilacionista, que teve como uma de suas vertentes históricas a tentativa de “emancipar” os índios pela entrega e livre disposição de terras, idealizando o modelo econômico e agrícola ocidental como panaceia para a integração à sociedade ocidental – lógica que permanece intacta no pensamento dos que hoje dizem que há “muita terra para pouco índio”.
Temos um caso emblemático e significativo na Lei Dawes, de 1887, dos Estados Unidos, que teve objetivo declarado de promover a integração dos índios à sociedade. A lei, também chamada de General Allotment Act (lei geral de atribuição, em tradução livre), dividiu as terras indígenas em parcelas familiares ou individuais, permitindo posteriormente a sua alienação a terceiros. A lei foi revogada em 1934, com o reconhecimento de seus efeitos negativos e devastadores sobre os indígenas norte-americanos, que entregaram para os não indígenas mais de 90 milhões de seus antigos 138 milhões de acres de terras, ocasionando, ainda, rompimento dos vínculos tribais e miséria a parcelas significativas daquelas populações.
No Brasil, no caldo de cultura que gerou o capítulo dos índios na Constituição, está um amplo debate, revisitado por Rubens Valente no livro “Os fuzis e as flechas”, com manifestações de antropólogos, indígenas e indigenistas da estatura de Álvaro Villas Bôas, padre Iasi, Manuela Carneiro da Cunha, Carmen Junqueira e Darcy Ribeiro. Estes rechaçaram a proposta do então ministro do Interior, Maurício Rangel Reis (1974-1979), que consistia no estabelecimento de critérios de definição de integração à “civilização” para então acabar com a unicidade e indivisibilidade das terras indígenas, entregando-as aos grupos e indivíduos que demonstrassem capacidade de desenvolver atividades agrícolas, critério no mínimo curioso, pois os ameríndios desenvolvem a agricultura há milhares de anos e legaram ao mundo plantas que fazem parte da base alimentar da humanidade, como as batatas, o milho, o tomate, o algodão, a mandioca e o cacau, dentre inúmeras outras. No projeto então proposto por Reis, após dez anos os indígenas poderiam negociar as terras. A intensa mobilização para a rejeição da proposta fez o projeto ser arquivado no mandato do general Figueiredo e certamente subsidiou a construção das normas constitucionais sobre os regimes jurídicos das terras indígenas, que dentre outras coisas impede a alienação e a disposição.
Dada a maneira diversa que a maioria dos indígenas se coloca no mundo e se relaciona com ele, mesmo aqueles que têm contato antigo e intenso com a sociedade envolvente não se veem como proprietários. Como consequência, a disposição sobre as terras e sobre os bens de usufruto indígena – ainda que fosse juridicamente permitida – não teria e não poderia ter o mesmo significado e consequência jurídica que tem para nós. As circunstâncias de necessidade momentânea e pressões externas poderiam induzir a transações espúrias sobre as terras indígenas, com evidentes vícios de consentimento, que comprometeriam o futuro desses povos, eis que, como dito, umbilicalmente ligados às suas territorialidades, do que dependem as suas reproduções física e cultural.
Por fim, sobre eventuais debates acerca de considerações sobre a dimensão das terras indígenas, note-se que se o verdadeiro incômodo de algumas pessoas e autoridades fosse o tamanho das terras diante do número de habitantes, por coerência deveria também ser objeto de preocupação e de ações efetivas a omissão constitucional de demarcação das terras dos índios sem terras, caso dos Puruborá, Migueleno, Kujubim, Guarasugwe, Wajuru e tantos outros, ou então o diminuto tamanho da reserva indígena de Dourados, que abriga cerca de 15 mil indígenas em 3,6 hectares de terra, ou, ainda, os inúmeros latifúndios espalhados pelo país, muitos com área de dezenas de milhares de hectares de propriedade de único dono. No entanto, estes não incomodam porque vê-se neles a legitimidade de um modo de uso do modelo ocidental, focado no rendimento econômico, nada importando a concentração de terras diante do número de pessoas que nela vivem. Em relação aos indígenas, entretanto, apesar da estatura das normas constitucionais e de direitos humanos que consagram o direito ao uso das terras segundo modelos culturais tradicionais, conquistas marcadas por muita luta e sangue, na prática há recalcitrância da parte de certos representantes políticos em aceitar as normas postas e consagradas, base do Estado Democrático de Direito. Evidencia-se mais uma vez a velha conhecida e juridicamente inaceitável tentativa de integrar os indígenas, fazendo-os perder tudo aquilo que os torna únicos – e por isso extremamente valiosos para a diversidade cultural da humanidade – submergindo-os na suposta democracia racional brasileira.
* Daniel Luis Dalberto é procurador da República, mestre em direito, especialista em direito público, autor do livro “Programas sociais e povos indígenas. Ensaio sobre etnocentrismo, pobreza e desenvolvimento”.
** Artigo publicado originalmente no jornal Nexo