A Lei nº 11.101/2005, que regulamenta a recuperação judicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, estabelece, no artigo 83, a ordem de pagamento dos créditos da falência, especificando quais dívidas deverão ser pagas com prioridade [1].
Na classificação apresentada, são créditos prioritários os créditos trabalhistas, os créditos gravados com direito real de garantia, os créditos tributários etc.
Ocorre que muitos dos bens de um empresário ou de uma sociedade empresária falidos arrolados em um processo de falência podem constar como garantia de pagamento de outras dívidas do(a) falido(a), como é o caso, por exemplo, de eventual obrigação pecuniária de um empresário falido, investigado e/ou processado na seara criminal, que resolve celebrar um acordo de colaboração premiada.
Nesse caso, qual crédito deve prevalecer, o do acordo de colaboração premiada ou os créditos da falência? O crédito do acordo de colaboração premiada passará a figurar na classificação dos créditos constantes na lei de falência?
Por meio de um processo de falência, procede-se a alienação dos bens de um empresário ou sociedade empresária que não tenha honrado com obrigações patrimoniais. Os créditos da universalidade de credores irão incidir sobre a totalidade do patrimônio do falido, devendo o pagamento ocorrer em consonância com a ordem de preferência estabelecida no artigo 83 da Lei nº 11.101/2005.
O processo de falência se funda, portanto, no dever de adimplemento empresarial das obrigações pecuniárias assumidas. Para se estabelecer a ordem de prioridade dos créditos a serem pagos, em razão da escassez natural de recursos do falido em um processo de falência, a Lei nº 11.101/2005 adotou parâmetros valorativos a serem observados no momento do pagamento. No inciso I do artigo 83, por exemplo, levou-se em consideração a natureza alimentar da verba trabalhista, ao passo que considerou como segundo crédito prioritário os gravados com direito real de garantia, até o limite do valor do bem gravado, em decorrência de envolver um crédito que a princípio já se encontrava garantido por um bem.
Como ficam os créditos decorrentes de um acordo de colaboração premiada?
O acordo de colaboração premiada é um negócio jurídico processual por meio do qual o colaborador renuncia temporariamente ao seu direto ao silêncio e à garantia da não autoincriminação, em troca de um prêmio, em razão de ter decidido colaborar com a persecução penal.
O acordo de colaboração premiada envolve, portanto, diversos direitos e garantias fundamentais, bem como o interesse público à persecução, tendo como fundamento principal, no que diz respeito ao colaborador, o direito à liberdade, ameaçado pelo andamento da persecução penal que o colaborador resolve colaborar.
Em um acordo de colaboração premiada, diversos direitos e obrigações são assumidos pelas partes, inclusive obrigações de natureza pecuniária pelo colaborador. Em caso de descumprimento das obrigações, o acordo poderá ser rescindido, que, quanto ao colaborador, poderá ensejar em risco ao seu direito à liberdade.
Observa-se, portanto, que além de se transigir sobre diversos direitos e garantias, individuais e sociais, em um acordo de colaboração premiada, o pacto envolve o direito à liberdade do colaborador, possuindo as obrigações pactuadas, inclusive as pecuniárias, extrema relevância em nosso ordenamento.
Nesse cenário, o crédito pecuniário em um acordo de colaboração premiada sustenta-se em um contexto de colaboração com a atuação do Estado na persecução penal, bem como em direitos fundamentais do colaborador, sendo, portanto, de natureza totalmente diversa dos créditos constantes em um processo de falência.
Desse modo, não há dúvida de que o crédito de um acordo de colaboração premiada não deve fazer parte dos créditos executados em um processo de falência, bem como deve prevalecer em relação a esses créditos, pois se sustentam em princípios, valores e direitos que, comparativamente com os constantes em um processo de falência, devem ser prioritários.
Não se está olvidando da importância do direito alimentar, constante no inciso I do artigo 83 da Lei nº 11.101/2005. Contudo, deve-se ressaltar que os direitos fundamentais, como conjunto de direitos que norteia e garante a existência dos seres humanos como indivíduos e seres gregários, constituem um sistema de proteção a ser respeitado de forma holística. Por outro lado, nenhum sistema normativo é perfeito a ponto de solucionar todas as controvérsias a partir da simples subsunção do fato a norma. Na linguagem do Direito, segundo Alexy [2], há uma abertura necessária que comporta a "possibilidade de contradições normativas, a falta de normas, sobre as quais a decisão apoiar-se, e a possibilidade de, em casos especiais, também decidir contra o texto de uma norma".
Diante da colisão entre direitos fundamentais, deve-se adotar a interpretação, no caso concreto, que proporcione a melhor solução para o choque de direitos, fazendo prevalecer, respeitado o núcleo essencial dos direitos envolvidos, os direitos fundamentais que melhor proporcionem os valores individuais e coletivos vigentes. No caso em discussão, enquadrando-se o crédito de um acordo de colaboração premiada em uma posição inferior aos de um processo de falência, mesmo com relação às verbas trabalhistas, haverá grave prejuízo aos direitos fundamentais do colaborador, entre eles o direito à liberdade, bem como aos interesses da sociedade, materializado na persecução penal.
[1] "Artigo 83 - A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem: I - os créditos derivados da legislação trabalhista, limitados a 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos por credor, e aqueles decorrentes de acidentes de trabalho; II - os créditos gravados com direito real de garantia até o limite do valor do bem gravado; III - os créditos tributários, independentemente da sua natureza e do tempo de constituição, exceto os créditos extraconcursais e as multas tributárias; IV - (revogado); a) (revogada); b) (revogada); c) (revogada); d) (revogada); V - (revogado); a) (revogada); b) (revogada); c) (revogada); VI - os créditos quirografários, a saber: a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo; b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento; e c) os saldos dos créditos derivados da legislação trabalhista que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo; VII - as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, incluídas as multas tributárias; VIII - os créditos subordinados, a saber: a) os previstos em lei ou em contrato; e b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício cuja contratação não tenha observado as condições estritamente comutativas e as práticas de mercado; IX - os juros vencidos após a decretação da falência, conforme previsto no artigo 124 desta lei. §1º Para os fins do inciso II do caput deste artigo, será considerado como valor do bem objeto de garantia real a importância efetivamente arrecadada com sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado. § 2º Não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócio ao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade. §3º As cláusulas penais dos contratos unilaterais não serão atendidas se as obrigações neles estipuladas se vencerem em virtude da falência. §4º (Revogado). §5º Para os fins do disposto nesta Lei, os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação. §6º Para os fins do disposto nesta Lei, os créditos que disponham de privilégio especial ou geral em outras normas integrarão a classe dos créditos quirografários".[2] ALEXY, Robert. Minha filosofia do direito. In: HECK, Luís Roberto (Org). Constitucionalismo discursivo. 4. ed.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 36.
** Galtiênio da Cruz Paulino é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.
* Artigo publicado originamente no Conjur