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Juiz das garantias e os elementos probatórios produzidos na investigação

 A Lei nº 13.964/2019 objetiva acrescentar ao Código de Processo Penal a figura do juiz das garantias[1]. Entre os dispositivos que regulamentam o referido instituto está o constante no art. 3º C, §3º, o qual estabelece que “os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado”.

De acordo com o ventilado dispositivo, veda-se, em suma, que ocorra a apresentação integral dos autos investigativos perante o juízo responsável pelo julgamento da causa[2].

Ocorre que a juntada integral dos autos investigativos no momento do oferecimento da denúncia sempre foi enquadrada como uma forma de resguardo do direito à ampla defesa, maculado na hipótese de o órgão acusador selecionar, ao denunciar o acusado, apenas os elementos que fundamentam a acusação.

Não se pode olvidar que, mesmo quando atua como parte, o Ministério Público também se apresenta como guardião da ordem jurídica, visto que tem como objetivo em uma ação penal, por exemplo, a verdade, não a condenação do acusado.

A restrição da apresentação dos elementos investigativos no momento da acusação viola o direito à ampla defesa, em razão de dificultar o exercício desse direito pelo acusado, bem como dificulta a análise do caso pelo juízo, que, na hipótese de apresentação da totalidade dos autos investigativos, poderá aferir com base no todo apurado se a denúncia ofertada é ou não consistente. Alguns elementos não apresentados na acusação, por exemplo, poderão ser essenciais para uma análise defensiva do acusado.

A impossibilidade de seleção probatória é, inclusive, uma realidade vigente no direito norte-americano. Em 1963, no Caso Brady v. Maryland, a Suprema Corte americana decidiu que o devido processo legal é violado quando o Ministério Público, mesmo de boa-fé, omite evidências que sejam favoráveis ao acusado.

No referido caso, o acusado, que respondia pelo delito de latrocínio, admitia a prática do delito de roubo, porém negava o crime de homicídio. O outro acusado, em depoimento, admitiu que foi o responsável pelo estrangulamento da vítima. Esse depoimento foi omitido pelo Ministério Público.

Já em 1976, no caso U.S. v. Agurs, foi reafirmado o dever do Ministério Público, independente de requerimento da defesa, de revelar as evidências que tomou conhecimento e são favoráveis ao acusado, sob pena de violação ao devido processo legal. A omissão impossibilita que o acusado seja submetido a um julgamento justo. O mesmo entendimento foi reiterado em 2002, no caso United v. Ruiz.

Observa-se, portanto, que a apresentação da integralidade dos autos investigativos ao juízo julgador é um mecanismo de resguardo dos direitos do acusado à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal, visto que possibilitará que seja aferida “a verdade” de maneira mais precisa, não ocorrendo qualquer prejuízo ao acusado e ao processo que se inicia.

Outrossim, o art. 3º C, §3º deve ser compatibilizado com outros dispositivos ainda vigentes no Código de Processo Penal, como é o caso do art. 12, o qual determina que o inquérito policial deverá acompanhar a denúncia, sempre que a embasar[3]. No mesmo sentido o art. 155, que possibilita o amplo acesso do juízo julgador aos elementos colhidos durante a investigação para livremente formar sua convicção[4].

O art. 3º C, §4º, assegura às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias, garantindo que a defesa tome conhecimento de todo o procedimento investigativo.

Sendo assim, acusação e defesa poderão anexar às suas peças processuais documentos extraídos dos autos do inquérito.

Não faria sentido garantir o acesso e ao mesmo tempo impedir as partes de usarem elementos do inquérito para provar suas alegações perante o juiz julgador.

Na hipótese de o Ministério Público falhar em seu papel de garantidor da ordem jurídica, por meio da omissão de elementos de prova importantes que possam favorecer a tese defensiva, é esperado do advogado ou defensor público que se utilize dos autos do inquérito ou PIC para apontar a questão perante o juiz julgador, influenciando a valoração da prova e o julgamento final a favor do seu cliente.

Outrossim, todo juiz, seja ele das garantias ou de instrução e julgamento, é fiscalizador da observância dos direitos e garantias fundamentais em todas as fases do processo penal. Eugênio Pacelli e Douglas Fischer lucidamente afirmam que o “juiz do processo é livre para explorar em maior extensão a atividade probatória da defesa, que nem sempre está tão bem aparelhada como a acusação”[5].

Desse modo, ao juiz de instrução e julgamento não cabe suprir deficiências da acusação, conforme solução presente no art. 155 do CPP. Ou seja, não havendo prova da acusação produzida em contraditório judicial, o juiz deverá absolver o acusado e não buscar fundamentação nos elementos do inquérito.

Já a falta ou deficiência da defesa é reconhecidamente causa de nulidade do processo penal[6]. Por conseguinte, a ausência de acesso do juiz de instrução e julgamento aos autos do inquérito policial ou PIC poderá enfraquecer o direito à ampla defesa, uma vez que não poderá aferir de forma eficiente a atividade probatória realizada pelo acusado. A livre análise do juízo poderá resultar, inclusive, em uma absolvição, mesmo extrapolando as alegações defensivas.

Parece-nos que a implantação do juiz de garantias, embora seja um avanço rumo ao processo penal acusatório e ao devido processo legal, precisa ser melhor acomodado em nosso ordenamento jurídico. Não se pode admitir retrocessos no exercício do direito à defesa e à busca da verdade, assim como não interessa à sociedade uma acusação manietada e débil diante de uma justiça cega. A balança da justiça deve sempre tender ao equilíbrio.

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[1] Vigência suspensa em razão de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

[2] Não se discutirá neste artigo se o inquérito policial está abarcado pela restrição do dispositivo. Discussão detalhadamente desenvolvida pelo autor Vladimir Aras no artigo: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-21/vladimir-aras-juiz-garantias-destino-inquerito-policial>.

[3] Art. 12. O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra.

[4] Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação.

[5] PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência.12. ed. – São Paulo: Atlas, 2020.

[6] Súmula nº 523 do Supremo Tribunal Federal: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”.

* Artigo publicado originalmente no site Jota

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