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O acordo de não persecução cível nos tribunais

1. Introdução1

Uma das maiores novidades no campo da improbidade administrativa é o acordo de não persecução cível (ANPC), introduzido na Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa - LIA) pela Lei 13.964/2019 (pacote anticrime).

Pode-se dizer que o ANPC é um instituto disruptivo para o sistema da improbidade administrativa, pois quebrou o dogma da proibição de consensualidade ( § 1º do art. 17 da LIA).

A Lei 13.964/2019 foi aprovada com o art. 17-A, o qual trazia os requisitos e o procedimento do ANPC, porém esse dispositivo foi vetado pelo Presidente da República, impedindo um desenvolvimento uniforme de tal instituto no Brasil e, por consequência, aumentando a insegurança jurídica.

Uma controvérsia que se instalou, por exemplo, foi sobre a possibilidade de celebração de acordos nos Tribunais, havendo corrente contrário a celebração do ANPC após a prolação da sentença.

Em 16 de junho de 2021, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 10.887/2018, que altera a Lei de Improbidade Administrativa em variada extensão, sendo que o ANPC voltou a ser regulamentado, agora no art. 17-B. O PL está em apreciação no Senado Federal.

O § 4º do art. 17-B aparentemente acabará com tal controvérsia, quando diz que o acordo “poderá ser celebrado no curso da investigação de apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade ou no momento da execução da sentença condenatória”.

O presente artigo visa tecer uma visão crítica sobre o sentido e alcance do ANPC nos tribunais.

2. ANPC: Um modelo negocial vertical

A antiga vedação de realização de acordo, transação ou conciliação ( § 1º do art. 17 da LIA) era harmônica com a interpretação fechada de interesse público da época, entendo-o como indisponível em todos os seus termos.

A evolução do Direito Administrativo apontou que a consensualidade no direito sancionador também é plenamente capaz de proteger bens jurídicos, recompor a juridicidade com o dispêndio de menos recursos do Estado e energia das partes, trazendo igual ou maior eficácia no cumprimento das sanções e na prevenção de reiteração de conduta ilícita. Os dois modelos podem conviver harmonicamente. Há de se reconhecer, portanto, que a consensualidade, ao contrário do que se pensava, é compatível e fomentadora do interesse público.

Cumpre salientar que não é qualquer consensualidade que se harmoniza com o direito sancionador. Há dois padrões que variam de acordo com a intensidade da autonomia da vontade, que vão do equilíbrio à quase submissão.

Nos acordos horizontais, as partes têm ampla margem de negociação por estarem, ao menos juridicamente, em posições de igualdade. Isso quer dizer que o próprio sistema jurídico não impõe limitações para a fase de puntuação do acordo e as partes têm plena liberdade para formatação das cláusulas do ajuste, podendo negociar tudo que não seja proibido pela lei, ordem pública e bons costumes. Prevalece, nesse modelo, o princípio da autonomia privada. Importante dizer que, mesmo nos contratos horizontais entre particulares envolvendo direito disponível, a autonomia da vontade não é absoluta, havendo limitações em prol da função social do contrato2.

Os acordos verticais envolvem direitos indisponíveis que acabam limitando a autonomia da vontade de ambos os celebrantes, pois a parte com posição dominante está adstrita aos limites legais para a negociação (ou seja, com poder decisório restrito) e a outra parte tem pouquíssimo espaço para “barganha”, pois a essência do direito material deve ser mantida. Esse modelo contratual desenha um desequilíbrio de forças entre as partes e não há nenhuma antijuridicidade nisso, pois as partes devem ajustar o interesse público às suas vontades.

No âmbito do direito sancionador pode-se afirmar que os acordos seguem o modelo vertical, pois os requisitos e as condições de contratação são altamente regulados, diminuindo o poder de negociação da parte pública celebrante e aumentando o estado de submissão da parte contrária. Se é certo que os acordos verticais também são pautados pela voluntariedade (do contrário não seria acordo), também é verdade que a autonomia da vontade está delimitada pelo interesse público, cujo núcleo essencial deve ser preservado.

O acordo de não persecução cível tem natureza de negócio jurídico bilateral celebrado entre, de um lado, os legitimados do art. 17 da LIA (Ministério Público ou Pessoa Jurídica interessada) e, do outro, as pessoas, físicas ou jurídicas, investigadas ou processadas pela prática de improbidade administrativa, devidamente assistidas por advogado ou defensor público.

O acordo de não persecução cível é sempre pautado pelo interesse público, sendo essa a principal finalidade buscada na consensualidade do direito sancionador. Diante da indisponibilidade do interesse público, o acordo deve buscar uma solução útil que seja necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do ilícito, mediante avaliação das peculiaridades do caso concreto.

Sendo o direito sancionador indisponível, alguma sanção deve ser aplicada e, para tanto, a parte pública celebrante deve ter presente indícios suficientes de autoria e materialidade, pois não se propõe um acordo para alguém que se sabe inocente.

Assim, uma ou mais sanções podem ser negociadas, sempre ajustadas à gravidade do fato e reprovabilidade da conduta, preservando a tutela do bem jurídico A parte pública celebrante deve buscar a celebração de um acordo que atenda ao princípio da proporcionalidade na sua dupla dimensão, a qual contempla a proibição do excesso (descartando sanções exageradas) e o da proibição da proteção deficiente, evitando abrandamentos incompatíveis com a proteção dos bens jurídicos protegidos, dentre eles o patrimônio público e a moralidade administrativa.

3. O acordo de não persecução cível nos Tribunais

Uma questão que tem sido objeto de controvérsia diz respeito a possibilidade, ou não, de se realizar acordos de não persecução cível perante os tribunais. O debate quanto ao momento da celebração do acordo tem trazido insegurança jurídica e precisa de um encaminhamento doutrinário e jurisprudencial mais firme para pacificar a questão.

Sem dúvida nenhuma, o momento ideal para a celebração do acordo é antes mesmo do ajuizamento da ação judicial. Pela própria terminologia, a principal finalidade do acordo é o de não persecução, que consiste em não ajuizar ação de responsabilização pela prática de ato de improbidade administrativa. Isso porque no início há uma possibilidade de formulação de acordos mais razoáveis, pois as partes têm uma assimetria de informações quanto ao resultado esperado no processo. Podem até calcular probabilidades, mas nunca certeza, pois ambas estão no ponto zero.

A Lei 13.964/2019, ao trazer o acordo de não persecução cível para a LIA, inseriu o § 10-A no art. 17, estabelecendo que, havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias. Essa regra tem dado espaço para algumas controvérsias hermenêuticas. Uma interpretação que parece clara e consensual, pela própria literalidade da lei, é a de que se admite acordo mesmo com a ação já ajuizada, porém antes do prazo da contestação. O dissenso começa quando se indaga da possibilidade de fazer acordo depois da contestação e se acirra quando se questiona a viabilidade de acordo após a sentença.

A nosso juízo, a regra não proibiu a realização de acordo após a contestação3. Não há nada escrito nesse sentido. A lei apenas autorizou a interrupção do prazo da contestação caso as partes tentem uma negociação ainda na fase postulatória do processo de conhecimento. Ou seja, caso queiram abrir diálogo para negociação após a contestação, o processo continuará tramitando sem interrupção ou suspensão dos prazos procedimentais e, tão logo se chegue a um acordo, basta requerer homologação judicial, que se dará por meio de sentença, abreviando o processo judicial.

Desafio maior ocorre em aceitar acordos de não persecução cível após a sentença, pois as partes saíram do ponto zero e o provimento jurisdicional provavelmente colocou uma parte em posição de vantagem em relação a outra. Também se argumenta que a admissão de ajustes após a sentença pode inibir a realização de acordo no tempo mais adequado (antes do processo ou na sua fase postulatória), abrindo uma escalada de cálculos oportunistas sobre o momento privilegiado para uma das partes, em detrimento do interesse público.

Entendemos que a Lei 13.964/2019 não definiu o momento de sua celebração. A menção à contestação diz respeito tão-somente à interrupção do prazo de resposta e não ao limite temporal para se firmar o acordo, sendo certo que o § 4º do art. 17-B do PL 10.887/2018, aprovado pela Câmara dos Deputados, deixa essa possibilidade mais clara do que nunca.

Inclusive, o novo Código de Processo Civil tem por matriz axiológica a consensualidade, que pode ser manifestada e aplicada em qualquer fase processual, devendo ser estimulada pelo Estado e pelas partes4.

Assim, é perfeitamente possível a celebração de acordo cível no âmbito dos Tribunais5, sendo certo que o Ministério Público Federal, por meio da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, editou a Orientação nº 10, de 9 de novembro de 2020, regulamentando o acordo de não persecução cível e permitindo expressamente a celebração pelo Parquet Federal em grau recursal6.

Caso o PL 10.887/2018 seja aprovado também no Senado, sem mudança relevante no § 4º do art. 17-B, a realização de ANPC será possível em qualquer fase (extrajuducial ou judicial) ou momento processual, inclusive quando da execução da sentença condenatória.

Mencionado PL prevê legitimidade exclusiva para o Ministério Público celebrar ANPC. É importante ressaltar que, embora o acordo possa ser realizado em qualquer fase ou momento processual, uma vez iniciada a negociação e rejeitado o acordo (por qualquer das partes), entendemos que não há mais possibilidade de nova tentativa de acordo, salvo situação de fato novo ou de direito superveniente.

Dentro da sistemática e principiologia do Ministério Público, há de ser respeitado o princípio da independência funcional e da unidade, de modo que se o acordo foi oportunizado no primeiro grau, porém justificadamente rejeitado, o membro do Parquet oficiante em grau recursal não poderá propor novo acordo de não persecução cível, havendo preclusão. Tal entendimento garante o respeito aos princípios institucionais do Ministério Público e evita que se postergue a tentativa de acordo somente após saber o resultado da sentença (violação da boa-fé objetiva processual). Ou seja, o acordo no Tribunal somente deve ocorrer quando não foi oportunizado no primeiro grau, mesmo na vigência das normas permissivas.

Obviamente, havendo fato novo ou direito superveniente que altere a situação processual no momento em que o acordo foi rejeitado, é possível iniciar uma nova negociação e eventualmente celebrar ANPC, dentro da boa-fé processual, cooperação e consensualidade.

Superada essa condição, cabe à parte pública celebrante em grau recursal um cuidado adicional na verificação da viabilidade do acordo, que deve partir da análise da justeza da sentença (atendimento ao princípio da proporcionalidade na sua dupla dimensão). Caso se verifique que as sanções aplicadas na sentença sejam adequadas e proporcionais à gravidade do fato, não haverá interesse público para a celebração de acordo. Isso porque o acordo de não persecução cível não é um sucedâneo recursal, visando a uma reforma da sentença. Assim, apenas quando se vislumbre que a sentença aplicou uma sanção desproporcional, pode-se fazer um acordo para acomodar uma sanção mais justa. Essa linha de pensamento, inclusive, estimulará a celebração de acordos em primeiro grau, já que a ausência de disclosure sobre as sanções concretas aplicadas permitirá que se chegue a um acordo mais equilibrado, prevenindo processos.

Nos Tribunais, a competência para a homologação do acordo é do Relator do recurso (CPC, art. 932, I), que transformará o ajuste em título executivo judicial. Já o cumprimento e fiscalização do acordo tem como órgão competente o juízo de primeiro grau onde tramitou a fase processual de conhecimento, num perfeito paralelo do que ocorre com o cumprimento de sentenças transitadas em julgado, após todo o tramite recursal e trânsito em julgado. É que no processo civil, de regra, o juiz natural da execução é o de primeiro grau, cuja competência é funcional e, portanto, absoluta (salvo nos casos de ações originárias). E especificamente nos acordos de não persecução cível a fiscalização em primeiro grau ocorrerá no local dos fatos, que firmou a competência territorial, permitindo um acompanhamento efetivo pela parte pública e facilitando o cumprimento do acordo pela outra parte celebrante.

4. Conclusão

O acordo de não persecução cível introduz, de forma legal e expressa, a consensualidade na lei de improbidade administrativa, mas, à míngua de uma regulamentação mais detalhada na Lei 8.429/92, muitas controvérsias estão abertas, em especial sobre a possibilidade, ou não, de realização de acordo nos tribunais.

O PL 10.887/2018 admite a celebração de acordo em qualquer fase ou momento processual, mas nada disse se a tentativa de acordo pode ser feita repetidas vezes, ao longo do percurso processual.

Embasado na boa-fé objetiva processual e dentro da sistemática dos princípios institucionais do Ministério Púbico, entendemos que se houve tentativa de acordo numa fase processual por membro do MP, rejeitada pelas partes, não pode o membro que oficia em instância superior celebrar ANPC, em homenagem ao princípio da unidade, salvo se demonstrada a presença de fato novo ou direito superveniente.

Além disso, em grau recursal, deve-se analisar se as penas aplicadas na sentença foram proporcionais e adequadas de acordo com a gravidade do fato e reprovabilidade da conduta, a fim de guiar o interesse público na celebração, ou não, do acordo, que não se reveste de sucedâneo recursal.

Notas

1 Ronaldo Pinheiro de Queiroz é Procurador Regional da República. Doutor e mestre em Direito pela PUC-SP. Professor e orientador pedagógico da ESMPU. Foi professor adjunto do Curso de Direito da UFRN (2009-2018). Foi membro do Grupo de Trabalho para acompanhamento das investigações do Caso Lava Jato perante o Supremo Tribunal Federal. Ex-Secretário Executivo da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão (Combate à Corrupção) do Ministério Público Federal. Foi integrante do Grupo Executivo da Secretaria de Cooperação Jurídica Internacional da Procuradoria Geral da República. Ex-coordenador do Núcleo Combate à Corrupção no MPF/RN. Coordenador do Grupo de Trabalho para regulamentação do acordo de não persecução cível no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).
2 Enunciado de n. 23 CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.
3 Entendo que o limite temporal é o prazo da contestação, Igor Pinheiro aduz que: “Uma segunda corrente, a qual nos filiamos, poderá propugnar a existência de preclusão para a realização de acordo após a apresentação da contestação pelo(s) requerido(s), pois, além da literalidade do dispositivo indicar isso, o acordo de não persecução cível surgiu para buscar, quando cabível, uma resolução célere das demandas. Permitir que o réu se valha de toda a marcha processual, com os recursos e incidentes quase intermináveis, para, após uma instrução desfavorável, mostrar-se ‘aberto ao acordo’ que antes refutava por certeza de sua inocência ou por conveniências pessoais (como a proximidade de uma eleição), seria algo contra a própria essência do instituto e um prêmio a recalcitrância e comportamento contraditório.”(PINHEIRO, Igor Pereira. Lei anticrime e acordo de não persecução cível – aspectos teóricos e práticos. Fortaleza: JHMizuno, 2020)
4 Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.
§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição
5 Há um precedente do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido: Acordo no AREsp 1314581/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/02/2021, DJe 01/03/2021.
6 Inclusive, o autor deste artigo foi o procurador regional da República responsável por realizar o primeiro acordo de não persecução cível no segundo grau, perante o Tribunal Regional Federal na 1ª Região (Vide http://www.mpf.mp.br/regiao1/sala-de-imprensa/noticias-r1/mpf-celebra-o-primeiro-acordo-de-nao-persecucao-civel-na-2a-instancia. Acesso em 19.05.2021).

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