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O Ministério Público e a prisão preventiva

A persecução penal, traduzida pela teoria geral do processo como Processo Penal, divide-se em duas fases: a persecução penal investigativa e a persecução penal processual propriamente dita. A primeira fase, correspondente à investigação, vai até o recebimento da denúncia. Já a segunda inicia-se com o recebimento da inicial acusatória e continuará durante todo o processo penal propriamente dito.

Ambas as fases integram o Processo Penal, que deve ser visto de maneira una, estando, desse modo, as duas fases interligadas. Por conseguinte, eventos persecutórios penais de uma fase, por exemplo a investigativa, que possam influenciar ou estejam interligados com situações persecutórias da outra, devem ser analisados de maneira holística, em razão, repita-se, da unicidade do Processo Penal.

Diante desse cenário, o entendimento de que a decretação de uma prisão preventiva engloba apenas a observância dos requisitos dos artigos 311, 312 e 313 do Código de Processo Penal é equivocado, pois não se observam os necessários reflexos da fase persecutória processual, quando decretada no curso de uma investigação, que é justamente a necessidade de oferecimento de denúncia nos casos de ação penal pública. Além dos referidos requisitos legais, o pedido de prisão obrigatoriamente deve passar pelo crivo de apreciação e aprovação do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública, que não apenas analisará a presença dos citados requisitos legais, mas aferirá se o caso está maduro para o ajuizamento, que, repita-se, o órgão é titular de maneira exclusiva.

Ora, se o Ministério Público entende que ao caso não é cabível prisão, quem oferecerá denúncia?

Não se pode olvidar que a prisão preventiva possui natureza cautelar, enquadrando-se, portanto, como um instrumento que visa a assegurar o sucesso de um feito principal. O caráter instrumental das medidas cautelares, incidente sobre o processo de conhecimento, "é um dos princípios gerais do processo cautelar, sendo própria de ambos os ramos do Direito Processual: o Penal e o Civil"1, e está presente também na prisão preventiva.

Nesse cenário, a pretensão cautelar buscada por meio de uma prisão preventiva necessariamente deve passar pelo crivo do titular da pretensão. Ora, como se conceder uma medida assecuratória (cautelar), como a prisão preventiva, contra a vontade do titular da pretensão principal (muitas vezes sem o seu conhecimento), a ser resguardada pela medida?

A tutela jurisdicional prestada pelo Estado pode ter caráter definitivo ou provisório2.

A tutela será definitiva quando houver cognição exauriente, por meio da observância do devido processo legal e um debate profundo sobre o objeto da demanda, resultando em decisões centradas na segurança jurídica (imutabilidade). A tutela definitiva pode ser satisfativa ou cautelar (não satisfativa). A satisfativa ocorre quando "certificar/efetivar o direito material"3. Já a tutela cautelar "não visa à satisfação de um direito (ressalvado, obviamente o próprio direito à cautela), mas, sim, assegurar a sua futura satisfação, protegendo-o"4.

A tutela provisória é de cognição sumária, precária e não produz coisa julgada, bem como é voltada à antecipação dos efeitos da tutela definitiva. Poderá ser também satisfativa, quando antecipa os efeitos da tutela definitiva, e cautelar, quando antecipa os efeitos de uma tutela cautelar.

A prisão preventiva se enquadra como uma tutela definitiva não satisfativa, ou seja, cautelar, pois busca assegurar direitos de cunho social que giram em torno da persecução penal, a serem efetivados em juízo por meio de uma ação penal. A prisão preventiva busca assegurar (proteger) a satisfação de um direito (materializado na persecução penal) que ocorrerá no curso do processo, com o oferecimento da denúncia.

Assim como todas as cautelares definitivas, a prisão temporária possui duas características essenciais, a referibilidade e a temporariedade. A cautelar definitiva necessariamente se refere a outro direito, diferente do direito à própria cautela. Além disso, a cautelar definitiva é temporária, pois é limitada temporalmente, em razão de durar "o tempo necessário para a preservação a que se propõe"5.

Diante dessas características das medidas cautelares definitivas, como é o caso da prisão preventiva, a concessão da medida necessariamente está vinculada à garantia do direito a ser resguardado na ação penal (referibilidade), só sendo cabível, portanto, após uma prévia análise de viabilidade e plausibilidade pelo titular do direito a ser protegido em juízo, no caso o Ministério Público. Ora, repita-se, como admitir a decretação de uma medida cautelar (prisão preventiva) sem a prévia concordância, muitas vezes conhecimento, do titular do direito a ser protegido em juízo (Ministério Público)?

Se com a tutela cautelar se objetiva assegurar/proteger um direito, apenas o titular do direito terá interesse nessa proteção. Se o titular entende que o direito protegido não está em risco e/ou não necessita de proteção, não será possível obrigá-lo a exercer esse direito, sendo necessário, portanto, que ao menos concorde com a medida protetiva para que posteriormente possa exercer a busca pelo direito principal. É o caso da prisão preventiva, que necessariamente deve passar pela prévia aprovação do titular da demanda principal, o Ministério Público, visto que o órgão não poderá ser compelido a interpor a demanda principal. Entendimento em sentido contrário fere a própria natureza das medidas cautelares.

Desse modo, a decretação de uma prisão preventiva no curso de uma investigação não envolve apenas a análise da presença dos requisitos dos artigos 311, 312 e 313 do Código de Processo Penal, mas também se o caso está apto ao oferecimento de denúncia, medida premente após a prisão. Essa análise só poderá ser feita pelo titular da ação penal, o Ministério Público.

Referências
[1] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da e GOMES, Abel Fernandes. Temas de Direito Penal e Processo Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 325.

[2] DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Teoria da Prova, Direito Probatório, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. Volume 2. Salvador: JusPodivm, 10ª edição, 2015, p. 561.

[3][3] DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Teoria da Prova, Direito Probatório, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. Volume 2. Salvador: JusPodivm, 10ª edição, 2015, p. 562.

[4] DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Teoria da Prova, Direito Probatório, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. Volume 2. Salvador: JusPodivm, 10ª edição, 2015, p. 562.

[5] DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Teoria da Prova, Direito Probatório, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. Volume 2. Salvador: JusPodivm, 10ª edição, 2015, p. 563.

* Galtiênio da Cruz Paulino é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

** Artigo publicado originalmente no site Conjur

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