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‘Pobres criaturas’: a proibição de crianças participarem de Paradas LGBTQIA+

*As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a posição da ANPR.

Lucas Costa Almeida Dias, procurador da República

Renan Quinalha, Advogado, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

 

O filme recém-indicado ao Oscar Pobres criaturas (2023) trata do amadurecimento feminino da personagem Bella Baxter, que é trazida de volta à vida após seu cérebro ser substituído pelo do filho que ainda não nasceu.

Em uma cena emblemática, Bella – até então, com pouco contato com a sociedade – não se contém ao ouvir uma banda tocar ao vivo: dança, pula e se delicia com a música. Há uma pulsão e uma ingenuidade na cena, que lembram a postura de crianças que ainda desconhecem um mundo cruel que lhes tolhe a autonomia. Ela se torna um corpo de mulher com uma estrutura psíquica infantil.

Enquanto isso acontece nas telas, o Brasil de 2024 segue chancelando a homotransfobia para todas as faixas etárias: levantamento recente apontou que já entraram em vigor, em 18 estados, 77 leis que materializam ofensivas contra a comunidade LGBTQIA+. Isso significa a promulgação de uma nova lei do tipo a cada duas semanas ao longo de 2023.

São leis que proíbem alunos de aprenderem sobre educação sexual e de gênero nas escolas, que proíbem pessoas trans de usarem banheiros de acordo com sua identidade de gênero e de participarem de competições esportivas na categoria do gênero com que se identificam.

Uma dessas leis foi aprovada no Amazonas, no ano passado, para proibir crianças e adolescentes de frequentarem paradas LGBTQIA+. Claro, sempre em nome da “proteção” e da “salvação” das crianças, assim como todos os personagens homens do filme tentam “proteger” Bella Baxter.

A Lei Estadual 6.469/23 obriga pais, responsáveis legais, realizadores e patrocinadores do evento a garantir que crianças e adolescentes não participem da Parada e estabelece multa de até R$ 10 mil por hora de exposição “ao ambiente impróprio”, sem autorização judicial.

A lei parte de uma premissa que pessoas podem ser influenciadas a se tornarem LGBTQIA+ ao entrarem em contato com esses ambientes, supostamente hostis e inadequados. Como se uma cena de dois homens de mãos dadas ou duas mulheres abraçadas, ou de pessoas LGBTQIA+ dançando e se manifestando, com demonstração pública de seus afetos, fosse induzir uma orientação homossexual em crianças e adolescentes.

A ideia, portanto, é a de segregar: é melhor ficar trancado em casa e não participar de manifestações de larga tradição na luta pela diversidade em nosso país. No filme, Bella Baxter também era trancada em casa por Dr. Godwin “God” Baxter (seu pai e criador) para não ter contato com o ambiente externo.

O autor do projeto de lei destacou que a Parada LGBTQIA+ se tornou local de prática de exposição do corpo, com constante imagem de nudez, simulação de atos sexuais e manifestações que resultam em intolerância religiosa e pode causar traumas na futura personalidade de crianças e adolescentes, já que há disseminação de ideias e imagens “errôneas” sobre a temática concernente ao gênero e à sexualidade.

O foco das paradas, que acontecem desde 1970 nos Estados Unidos e desde os anos 1990 no Brasil, nunca foi exibir publicamente atos de sexo explícito ou pornografia, conteúdos obviamente inadequados para crianças, mas a luta por visibilidade e por reconhecimento de direitos. São passeatas organizados com diligência e cuidado por organizações sérias do movimento LGBTQIA+, que contam com milhões de pessoas anualmente e que sempre contaram com enorme diversidade de apoios para a causa da igualdade, inclusive de famílias heterossexuais com seus filhos e filhas.

Comprovação disso é que não há registro relevante de incidentes, nesses atos públicos, que envolvem qualquer tipo de desrespeito à integridade e ao bem-estar de crianças e de adolescentes, que sempre estão acompanhados de seus responsáveis. Só uma visão abertamente homotransfóbica, que associa pessoas LGBTQIA+ a perversões, pode sustentar tal leitura distorcida de realidade.

Aliás, não é nada nova esse tipo de associação e de uso das infâncias para atacar, em uma cruzada moral, as pessoas LGBTQIA+. Como destaca a antropóloga Gayle Rubin, durante todo o século 20, “nenhum meio para despertar uma histeria erótica foi mais eficiente que conclamar as pessoas para proteger as crianças”.

Desse modo, a intenção discriminatória da referida legislação é evidente ao estabelecer a proteção de crianças a partir do pânico moral de supostas perversidades que poderiam acontecer nas paradas. Perversidades, aliás, que acontecem frequentemente dentro de casa (segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o período da pandemia – com todos em casa – foi recorde em número de abusos e violências contra crianças).

A lei vai na contramão da ruptura institucional operada pela Constituição Federal, que acabou com o regime de censura próprio da ditadura civil-militar, em que as pessoas eram proibidas, em nome da moral e dos bons costumes, de participarem de atos públicos.

De fato, a livre manifestação (de crianças e adolescentes, inclusive!) deve ser protegida, ampliada e fomentada.

Vale dizer que muitos pais e familiares heterossexuais e cisgênero fazem questão de levar às paradas seus filhos e filhas, que muitas vezes são crianças e adolescentes que manifestam uma variabilidade de gênero ou um desejo dissidente da heternormatividade. Em nome deles e por eles, querem construir uma sociedade livre de preconceitos.

Nessa linha, o filósofo Paul Preciado, no artigo “Quem defende a criança queer?”, coloca questões centrais para refletirmos sobre a verdadeira proteção para as crianças que sofrem bullying escolar e outras formas de violência: “Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do menino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança queer, bicha, sapatão, transexual ou transgênero? Quem defende o direito da criança a mudar de gênero, se for da vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero?”.

Como Bella Baxter, é preciso que a criatura se torne o criador: crianças e adolescentes têm o direito constitucional de participar de Paradas LGBTQIA+ e não são objetos e nem devem ter seus caminhos definidos por legisladores estaduais que criaram um espantalho moral para nutrir seus mais mesquinhos interesses eleitorais.

Lucas Costa Almeida Dias – Procurador da República no Acre e coordenador do Grupo de Trabalho LGBTQIA+ da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF)

Renan Quinalha – Advogado, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde também coordena o Núcleo TransUnifesp e presidente do Grupo de Trabalho de Reparação Histórica à População LGBTQIA+ do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania.

Publicado originalmente no Jota

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