A geração revolucionária de 1968 tinha uma máxima: nunca confiar em alguém com mais de trinta anos [1].
Justamente ao completar trinta anos, a Constituição brasileira de 1988 passou a sofrer a mais séria crise de desconfiança de sua história.
Por todos os lados do espectro político — inclusive no lado onde está a geração de 1968, agora desconfiada da Constituição com mais de trinta anos — irrompem defesas de alterações mais ou menos profundas do pacto constitucional, em especial quanto ao perfil de certas instituições.
Conservadores ou progressistas, movidos por sentimentos revanchistas ou pela compreensão honesta de que o arranjo institucional criado pelo pacto de 1988 não funcionou, não são poucos os setores que sustentam, por exemplo, que é preciso redesenhar o Ministério Público.
É nesse contexto que se insere a proposta, em tramitação na Câmara dos Deputados, de modificação da composição e do funcionamento do Conselho Nacional do Ministério Público.
De autoria do deputado Paulo Teixeira, parlamentar qualificado e comprometido com o bom debate, a proposta, em síntese, altera pontualmente a composição do Conselho e, mais importante, cria a possibilidade de que o Corregedor Nacional do Ministério Público seja um agente externo à instituição.
Não se duvida das boas intenções do projeto no sentido de aperfeiçoar o desenho do Ministério Público, o qual, é preciso reconhecer, errou muito na história recente brasileira, em especial na conversão do Direito Penal em suposto instrumento de transformação política.
Contudo, sob o ponto de vista da promoção dos direitos fundamentais, a proposta é um equívoco, que tampouco corrige as imperfeições institucionais que eventualmente contribuíram para os erros praticados pelo Ministério Público. Ao contrário, como veremos, a proposta pode acentuar essas imperfeições.
De início, é de se salientar que uma geração tem sempre o direito de se autogovernar, o que supõe, inclusive, a liberdade de definir os arranjos institucionais que melhor contemplam seus desígnios. O constituinte derivado e as maiorias políticas, portanto, como regra geral, devem ter ampla liberdade para promover mudanças nas instituições.
Essa prerrogativa, no entanto, segundo engenharia constitucional que se difundiu globalmente após a Segunda Guerra, encontra um limite nas chamadas cláusulas pétreas, entre as quais têm absoluta centralidade os direitos fundamentais.
Ocorre que a efetivação desses direitos exige, muito mais do que sua proclamação formal, um complexo aparato institucional, dotado de certas características. Uma dessas características é a contramajoritariedade.
É bem verdade que, em um Estado democrático, como bem anota Barroso, todo poder é representativo, "exercido em nome do povo e que deve contas à sociedade" [2]. Sua legitimidade, portanto, mesmo no caso de agentes políticos não eleitos, como os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, depende também, em alguma medida, da capacidade de corresponder aos sentimentos da soberania popular.
No entanto, numa democracia constitucional como a nossa, ao lado de instituições majoritárias, como o Poder Legislativo e o Poder Executivo, existem instituições com uma vocação essencialmente contramajoritária. Trata-se de instituições que, aqui recorrendo a uma expressão de John Rawls, "mitigam defeitos do princípio da maioria" [3]. É no seio de instituições com esse perfil — a exemplo do Ministério Público — que podem melhor transitar demandas de grupos vulneráveis e minoritários que não encontram representação adequada na política convencional. Povos indígenas, comunidades tradicionais e grupos socialmente estigmatizados em geral têm nas instituições contramajoritárias a garantia de não subordinação a interesses majoritários circunstanciais que poderiam significar a sua própria destruição.
Como já se disse, todo poder é representativo e toda instituição deve contas à sociedade. O fato, portanto, de instituições como o Ministério Público e o Poder Judiciário terem natureza contramajoritária não implica a impossibilidade de implementação de mecanismos de controle sobre eles ou entre eles e outras instituições. A Constituição de 1988, em sua redação original, previu uma série de mecanismos nesse sentido. Essa observação foi inclusive feita pelo ministro Cezar Peluso em julgado paradigmático que decidiu que a criação do Conselho Nacional de Justiça não ofende cláusula pétrea [4].
Acrescente-se que tais mecanismos de controle interinstitucional recíproco têm ainda maior relevância no caso do Poder Judiciário e do Ministério Público, cujos membros não passam pela accountability eleitoral a que estão sujeitos os integrantes do Legislativo e do Executivo. A título de comparação, nos Estados Unidos da América, promotores são eleitos pelo voto popular em 45 dos 50 estados. Seu alto grau de independência tem como contrapartida uma "accountability vertical", "exercida diretamente pelos eleitores" [5]. No Brasil, não tendo sido esse o modelo escolhido, convém que a accountability seja exercida e fortalecida por outros meios.
Nesse quadro, é necessário e saudável debater, refinar e atualizar permanentemente nosso sistema de freios e contrapesos. Aliás, o Conselho Nacional do Ministério Público, assim como o Conselho Nacional de Justiça, é instituição que emergiu, em 2004, justamente nesse contínuo processo de aperfeiçoamento.
Todavia, o projeto atualmente em debate na Câmara dos Deputados sobre o Conselho Nacional do Ministério Público pode subverter a própria natureza contramajoritária do Ministério Público, em prejuízo aos direitos fundamentais cuja proteção o constituinte lhe confiou.
Ao admitir que qualquer dos membros do Conselho, inclusive externo ao Ministério Público, possa assumir a função de corregedor, passamos a conviver com o risco de que atividades essencialmente contramajoritárias de procuradores acabem sujeitas ao crivo correcional de grupos majoritários. Não se pode desconsiderar a hipótese de que atuações de procuradores em defesa de povos indígenas, por exemplo, fiquem subordinadas ao escrutínio de um corregedor indicado ao Conselho Nacional do Ministério Público a partir de articulações de bancadas ligadas a grandes produtores rurais.
Perceba-se que não se trata aqui de questionar a legitimidade dessas bancadas e de suas pautas. O ponto é que não se pode cogitar que instituições concebidas para "mitigar defeitos do princípio da maioria", trabalhando em favor de pautas e direitos muitas vezes impopulares no processo político convencional, tenham sua atividade diretamente tutelada por esse processo político, por interesses e por maiorias políticas de ocasião.
A propósito, convém perceber que o próprio exercício da persecução penal, função também atribuída pelo constituinte ao Ministério Público, tem uma dimensão contramajoritária importante. O Direito Penal, como violenta manifestação do Estado apta a restringir a liberdade individual, deve estar firmemente atado aos direitos fundamentais. Não se trata de espaço de subordinação à opinião pública, ao clamor popular e a maiorias políticas. Os grandes equívocos históricos do Ministério Público ocorreram, entre outras razões, na medida em que seus membros, deliberadamente ou não, subordinaram suas atuações criminais a interesses de maiorias de ocasião, e não à dogmática rigorosa que deve presidir a aplicação do Direito Penal.
É um erro, portanto, supor que se podem corrigir tais equívocos subordinando correcionalmente o Ministério Público à política majoritária. Não se pode desprezar a possibilidade, recorrendo novamente a um cenário hipotético, de que procuradores garantistas tenham seus trabalhos avaliados por corregedor indicado por bancadas ligadas a movimentos de lei e ordem. Note-se, mais uma vez, que não se trata de discutir a legitimidade desses movimentos ou de quaisquer outros. A questão é que a Corregedoria Nacional do Ministério Público não é o espaço próprio para a implementação das pautas de tais grupos. Tampouco, desnecessário dizer, é espaço a ser ocupado por agentes ligados a propósitos revanchistas ou de perseguição a adversários políticos. Entretanto, a proposta em discussão na Câmara cria a possibilidade desses cenários e acaba dando margem a mais criminalização, o que claramente está no sentido inverso de suas próprias intenções.
Enfim, o projeto em debate na Câmara dos Deputados viola cláusula pétrea. Não por atingir qualquer suposto privilégio corporativo. Mas por, na contramão de seus propósitos, ameaçar direitos cuja proteção adequada exige necessariamente instituições contramajoritárias.
[1] VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008. p. 47.
[2] BARROSO, Luís Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo. Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 16, 2009.
[3] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 282-283.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3.367. Autor: Associação dos Magistrados Brasileiros. Relator: Ministro Cezar Peluso. Brasília, 13/04/2005.
[5] KERCHE, Fábio. O Ministério Público no Brasil: relevância, características e uma agenda para o futuro. Revista USP, v. 101, p. 113-120, 2014. p. 117.
* Artigo publicado originalmete no site Conjur
** Jorge Mauricio Klanovicz é mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília, especialista em Direito Aplicado ao Ministério Público pela Escola Superior do Ministério Público da União, procurador da República e autor da obra "Cláusulas pétreas institucionais: uma proposta teórica sobre poder de reforma constitucional, direitos fundamentais e instituições" (editora Juspodivm, no prelo).