Desde o ano de 2008, a Anvisa realiza o processo de reavaliação do agrotóxico Paraquate, que é um herbicida de contato, não seletivo com rápida absorção pelas plantas. “O Paraquat foi sintetizado pela primeira vez em 1950 (…) classificado entre os herbicidas mais tóxicos e perigosos para as plantas, animais e humanos.”[1] Estudos realizados pela Fiocruz, que ensejaram na proibição da comercialização do citado agrotóxico, concluíram que o Paraquate provoca efeitos de extrema gravidade para a saúde humana.
A Fiocruz igualmente afirma que mesmo “(…) em situações de exposição crônica, o Paraquate possui o potencial de causar efeitos graves a longo prazo, como neurotoxicidade, toxicidade reprodutiva, desregulação endócrina e genotoxicidade e até de perpetuar muitos desses efeitos para gerações subsequentes.”[2]
O agrotóxico é banido em extensa relação de países como China, Laos, Camboja, Costa do Marfim, Cabo Verde, Senegal, Nigéria. Recentemente, a Tailândia foi adicionada à lista, citando expressamente a necessidade de proteger a saúde humana.[3]
Conforme dados da própria EPA, a agência ambiental americana, é possível a sua inclusão no rol de agrotóxicos proibidos ou severamente perigosos da Convenção de Roterdã, ao lado do DDT e do 2,4,5,T, um dos componentes do nefasto agente laranja.[4]
Após o banimento em toda a União Europeia, iniciou-se o processo no Brasil. Foram realizados amplos debates e promovida uma consulta pública no ano de 2015, ocasião em que diversas contribuições da sociedade civil foram agregadas ao processo, tendo resultado na elaboração da Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa nº 177, de 21 de setembro de 2017, posteriormente alterada pela Resolução RDC nº 190/2017, as quais estabeleceram a proibição do ingrediente ativo Paraquate em produtos agrotóxicos no Brasil, prevendo regras transitórias de mitigação de riscos, o denominado “Phase-out”. Ou seja, a partir de 22 de setembro de 2020, o Paraquate não poderia mais ser utilizado no Brasil.
Apesar de todas as evidências científicas, previu-se na própria Resolução a possibilidade de nova avaliação pela Anvisa, desde que surgissem novos estudos que excluíssem o potencial mutagênico do Paraquate.
Entre as restrições de uso contidas na resolução consta a proibição da utilização nas culturas de abacate, abacaxi, aspargo, beterraba, cacau, coco, couve, pastagens, pêra, pêssego, seringueira, sorgo e uva bem como a proibição de aplicações costal, manual, aérea e por trator de cabine aberta.
Digno de nota é o “termo de conhecimento de risco e de responsabilidade” que deve ser anexado à receita agronômica do produto necessária para a aquisição:
Você Sabia:
Um Pequeno gole de Paraquate pode matar?
O Paraquate pode ser absorvido pela pele;
Evidências indicam que a exposição ao Paraquate pode ser um dos fatores de risco para a doença de Parkinson em trabalhadores rurais;
Evidências demonstram a existência de risco da exposição ao Paraquate causar mutações genéticas em trabalhadores rurais.
Logo após o início da adoção de medidas de distanciamento social, adotadas para o enfrentamento da pandemia do coronavírus, o assunto voltou à pauta da Anvisa. No dia 24 de março de 2020, o assunto foi incluído para deliberação no dia 31 de março de 2020[5].
Pautava-se o exame de minuta de “Proposta de Resolução de Diretoria Colegiada que altera os prazos da RDC nº 177, de 21 de setembro de 2017, que dispõe sobre a proibição do ingrediente ativo Paraquate em produtos agrotóxicos no país e sobre as medidas transitórias de mitigação de riscos” (Processo SEI nº 25351.903728/2020-98).
Em termos menos eufemísticos, a prorrogação do prazo de utilização do Paraquate, sem a apresentação de estudos científicos. Importante ressaltar que, embora a minuta de alteração da RDC nº 177/2017 estivesse em pauta para o dia 31 de março de 2020, ela não estava disponível para consulta no sítio eletrônico da Anvisa.
O Ministério Público Federal oficiou à Anvisa, em 26 de março de 2020, requisitou informações “sobre a fundamentação técnica para a proposta de prorrogação da RDC 177/2017 e estabeleceu, em face da urgência, prazo de 48 (quarenta e oito) horas para resposta. Em resposta, a Anvisa solicitou dilação de prazo, “tendo em vista a necessidade de diligências internas junto às áreas técnicas a que o tema está afeto”.
Dada a urgência sensível à questão, ajuizou-se pedido de tutela antecipada em caráter antecedente, buscando impedir a referida deliberação com os seguintes fundamentos: (i) a ausência de divulgação de “novas evidências científicas que excluam o potencial mutagênico do Paraquate”; (ii) a ausência de transparência na Proposta de alteração da referida Resolução, uma vez que a minuta sequer havia sido disponibilizada no sítio eletrônico da Anvisa, ao contrário de outras propostas de resolução cuja minutas se encontravam disponibilizadas no referido portal, tais como as previstas nos itens 2.4.2 e 2.4.4. do mencionado; (iii) a inadequação do momento escolhido, em meio ao cenário de isolamento social e enfrentamento da pandemia decorrente da disseminação do Covid-19, para deliberar sobre assunto cujo prazo sequer expirou.
A tutela antecipada foi concedida pelo Juízo da 1ª Vara Federal de Dourados (autos nº 5000960-81.2020.4.03.6002), e mantida pelo desembargador plantonista que analisou o pedido de efeito suspensivo contido no Agravo de Instrumento nº 5007180-59.2020.4.03.0000, interposto pela Anvisa.
Após a concessão da liminar, a Anvisa, informou que o tema foi trazido para o conhecimento do diretor, relator do processo de reavaliação, em 13 de fevereiro de 2020. Na ocasião foi realizada reunião com representantes da Frente Parlamentar da Agropecuária – FPA, da Associação dos Produtores de Soja e Milho (Aprosoja) e da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa).
Teria sido relatado que a retirada do mercado dos produtos a base de Paraquate acarretaria um problema para a cadeia produtiva, pois obrigaria o produtor a utilizar dois herbicidas como substitutos.
Erro grosseiro: da inobservância das normas e critérios científicos para prorrogação
Ao que tudo indica, a prorrogação da permissão de uso de agrotóxico já proibido, sem estudos científicos, pode ser configurado como “erro grosseiro”. Erro que autoriza a responsabilização pessoal do agente público, nos termos dispostos no art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.
Ao interpretar o art. 2º da Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020[6], o Plenário do STF, fixou a seguinte tese:
Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância:
i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou
ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.
A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente:
i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e
ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.
Não há outra conclusão a se chegar senão a de que a prorrogação da produção, comercialização e uso do Paraquate sem os estudos científicos previstos na própria RDC nº 177/2017 se configura em evidente erro grosseiro.
Ora, os riscos até então conhecidos da comunidade científica, e da própria agência reguladora brasileira, militam em favor da manutenção da proibição do agrotóxico. A aplicação do princípio da prevenção recomenda que a Anvisa só pode se debruçar sobre a questão, e aí exercer sua discricionariedade técnica, após a apresentação dos estudos mencionados na própria RDC nº 177/2017.
Para demonstrar como se consubstancia em erro grosseiro a prorrogação sem a apresentação de novos estudos, basta a leitura dos dispositivos que tratam do procedimento de registro de produto agrotóxico.
A lei claramente estabelece a proibição do registro de agrotóxicos que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas ou/e que provoquem distúrbios hormonais e danos ao aparelho reprodutor.
Ora, se o Paraquate não cumpre sequer os requisitos legais para que lhe fosse concedido o registro perante a Anvisa, tampouco seria possível a prorrogação da permissão de sua produção, comercialização e uso sem a comprovação de novas evidências científicas que excluam o potencial mutagênico do Paraquate.
O argumento da utilização em outros países é igualmente raso. A utilização nos EUA, por exemplo, apresenta exigências incompatíveis com a realidade brasileira como a exigência de aplicação por profissional certificado e a utilização do produto em sistema de circuito fechado, com impossibilidade de contato pelos utilizadores.
A medida prevista, a partir de setembro de 2020, determina que toda aplicação em embalagem inferior a 450 l (quatrocentos e cinquenta litros) deverá ser feita, por meio de um sistema que impeça vazamentos, transferência de recipientes ou mistura com outros produtos, de forma a impedir a exposição do produto a aplicadores e aplicadoras.
É lícito supor que ainda que estas custosas medidas fossem implementadas no Brasil, não seriam adequadamente fiscalizadas. Medidas mais simples estabelecidas como “proteção” não teriam sido, conforme pedidos de informações realizados.
As respostas remetidas pelas agências estaduais de proteção agropecuária bem como pelo Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento não apontaram, até o momento, registro de autuações em face do descumprimento das restrições impostas pela Anvisa. É improvável que esta seja a única legislação do país que não seja descumprida. A hipótese mais viável repousa na ausência de verificação do cumprimento pelas autoridades competentes.
O cenário que se afigura aponta para a desconsideração da vida de trabalhadores e trabalhadoras rurais em face de supostos incrementos nos custos de produção. A vulnerabilidade destas pessoas aos riscos do produto decorre de um déficit de proteção do Estado.
Déficit na provisão das adequadas medidas de fiscalização das atividades econômicas e, em caso de prorrogação, de evidente inobservância do princípio da prevenção e das normas e critérios científicos que, claramente, apontam para o banimento do agrotóxico. Vidas destas pessoas não podem, e não devem, ser grosseiramente desconsideradas.
Referências
[1] AKSAKAL, O. Assessment of paraquat genotoxicity on barley (Hordeum vulgare L.) seedlings using molecular an biochemical parameters. Acta Physiol. Plant, v. 35, p. 2281–2287, 2013 Apud Informações Antônio Alberto da Silva, da Universidade Federal de Viçosa. Autos n º 5000960-81.2020.4.03.6002
[2] Autos nº 5000960-81.2020.4.03.6002
[3] Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/06/22/exclusivo-eua-e-brasil-criticam-veto-da-tailandia-a-pesticida-veem-impacto-em-exportacoes.htm>.
[4] Disponível em: <https://www.epa.gov/ingredients-used-pesticide-products/paraquat-dichloride>.
[5] Item 2.4.1 da Pauta da 5ª Reunião Ordinária Pública da Dicol de 2020.
[6] Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.
Art. 3º Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:
I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;
II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público;
III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência;
IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e
V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas.
* Artigo publicado originalmente no site Jota