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Retrocesso legislativo no combate à improbidade administrativa: as inconsistências do Projeto de Lei 2.505/2021 do Senado Federal

A Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1993) constitui um marco no combate à corrupção e a outras formas de improbidade administrativa, integrando a legislação ao oferecer um tratamento jurídico mais completo, que abrange o espectro cível (não criminal). Essa lei serve como importante ferramenta especialmente ao Ministério Público, principal proponente das ações judiciais respectivas, e marcou a atuação de toda uma geração de Promotores e Procuradores. Por outro lado, a lei (e o Ministério Público) intimida administradores e políticos que se viram e se veem confrontados pela empreitada de combate à crônica cultura de enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário e violação de princípios – para ficar na tipologia adotada pela Lei 8.429 – que acompanha a Administração Pública brasileira.

Uma reação desmedida de resistência à responsabilização por improbidade administrativa apresenta-se agora no âmbito legislativo, por meio do Projeto de Lei 2.505/2021, em trâmite no Senado Federal após lamentável aprovação na Câmara dos Deputados.

Alguns aspectos dessa proposta de arrefecimento do combate legal à improbidade administrativa merecem ser apontados.

DESPERSONALIZAÇÃO: Enquanto a Constituição acentua claramente a responsabilização individual daquele que pratica ato de improbidade administrativa, na medida em que prevê sanções voltadas à pessoa (física e, eventualmente, jurídica), e a Lei 8.429 mantém essa direção ao focar no “agente público”, o PL 2.505/2021 suprime tal acento e prefere uma linguagem mais impessoal: “a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções” (novo art. 1º). A alteração textual dilui a responsabilidade pessoal almejada.

APROXIMAÇÃO COM O DIREITO PENAL E EXIGÊNCIA DE DOLO: A Lei 8.429 é uma resposta civil (não criminal) à improbidade administrativa, ainda que se valha de categorias jurídicas mais utilizadas no Direito Penal, como o dolo e a culpa, mas que são hábeis a qualificar as condutas em qualquer campo do Direito. No entanto, e a despeito da severidade das sanções previstas na Lei 8.429, não se trata de uma legislação criminal, as hipóteses de conduta são relativamente abertas e não taxativas (não configurando autênticos “tipos”, portanto), a competência jurisdicional não é do foro criminal, as sanções não são penas. Uma das consequências da natureza jurídica extrapenal da Lei 8.429 é a possibilidade de enquadramento criminal (relativamente) autônomo dos mesmos atos de improbidade administrativa.

O PL 2.505/2021 torna menos nítida a distinção da Lei 8.429 em relação ao âmbito criminal ao exigir indistintamente o dolo das condutas previstas, referindo-se às “condutas dolosas tipificadas” (novos art. 2º, §§ 1º e 2º; art. 3º; art. 10; art. 11, § 2º; art. 17, § 10-D). Ademais, retirar a responsabilização por culpa – ao menos em relação aos atos que causem prejuízo ao erário (conforme dispõe expressamente o art. 5º da Lei 8.429) – enfraquece muito a possibilidade de combate à improbidade administrativa, num claro episódio de retrocesso legislativo em contrário à diretriz constitucional.

A retenção somente da modalidade de conduta dolosa, avançada pelo PL 2.505/2021, viola a cobertura dada pela Constituição. O novo art. 17-C, § 1º, propõe: “A ilegalidade sem a presença de dolo que a qualifique não configura ato de improbidade.” Porém a legalidade não é o único princípio constitucional que rege a Administração Pública, visto que a Constituição consagra, ao lado dele, os princípios da “impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (art. 37), os quais não podem ser ignorados pela lei.

Chega-se, no PL 2.505/2021, a consagrar total confusão entre a esfera civil da improbidade administrativa e a esfera criminal, ao dispor-se que “[a] absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)” (novo art. 21, § 4º). Ocorre que os pressupostos da responsabilização criminal nem sempre são os mesmos da responsabilização civil. O próprio PL 2.505/2021 contradiz-se ao preceituar, na linha da versão original da Lei 8.429, que as cominações estabelecidas são independentes “das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica” (novo art. 12).

DISPOSIÇÕES DESNECESSÁRIAS: A proposta de modificação incide ainda num deslize técnico impróprio à legislação, que é a excessiva e rasteira pedagogia de ensaiar definições que estariam melhor situadas no campo conceitual da doutrina. Assim, por exemplo, com a definição de dolo (novo art. 1º, § 2º) – inclusive de modo diverso (embora não necessariamente divergente) ao Código Penal (art. 18, I) – e com a óbvia e desnecessária referência: “Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.” (novo art. 1º, § 4º).

Em sentido oposto, enquanto a Lei 8.429 refere, ilustrativamente, como hipótese de improbidade administrativa que importa enriquecimento ilícito, a utilização, “em obra ou serviço particular, [de] veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei (...)” (art. 9º, IV), com exemplos que auxiliam na aplicação da lei, o PL 2.505/2021 abandona indevidamente o apontamento e resume tudo a “qualquer bem móvel”.

Volta o PL 2.505/2021 a sobrecarregar o texto com a menção também óbvia de que a aquisição de bens de valor desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda pode ser justificada, “assegurada a demonstração pelo agente da licitude da origem dessa evolução” (novo art. 9º, VII).

Ao referir-se às interconexões com a responsabilização penal, o PL 2.505/2021 recai na repetição elementar de que “[a]s sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria” (novo art. 21, § 3º).

ESVAZIAMENTO DE HIPÓTESES: O elenco de hipóteses de improbidade administrativa da Lei 8.429 é esclarecedor, ainda que meramente exemplificativo. A partir da experiência, o legislador buscou prever situações que caracterizam improbidade. Não se justifica que o PL 2.505/2021 suprima algumas modalidades de conduta. É o que se dá com a hipótese de ato que cause lesão ao erário, consistente em “liberar recursos de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular” (art. 10, XXXI, da Lei 8.429). No atual contexto de parcerias da Administração Pública, essa é uma forma importante de desprezo ao patrimônio público e aos princípios administrativos, que não tem por que ser eliminada do texto legal.

Marcante é a subtração das mais evidentes hipóteses de improbidade administrativa que atentem contra os princípios da administração pública, hoje previstas no art. 11, I (“praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”), II (“retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”), IX (“deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação”) e X (“transferir recurso a entidade privada, em razão da prestação de serviços na área de saúde sem a prévia celebração de contrato, convênio ou instrumento congênere, nos termos do parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990”).

Essa categoria de atos de improbidade administrativa tem uma função importante, pois permite a responsabilização nos casos em que não se dá – ou não se consegue demonstrar suficientemente – o enriquecimento ilícito e/ou a lesão ao erário. Trata-se inclusive de garantia ao próprio responsável, que terá sua punição adequada (proporcional) à improbidade cometida, sem que se busque um necessário envolvimento com enriquecimento ilícito ou lesão ao erário. De todo modo, permanece a exigência geral de demonstração do efetivo desrespeito aos princípios da administração pública, conforme, aliás, acentua o próprio PL 2.505/2021 no novo art. 11, § 3º: “O enquadramento de conduta funcional na categoria de que trata este artigo pressupõe a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas.” A eliminação não se justifica, pois.

O desvio de finalidade e a mora ou omissão (Lei 8.429, art. 11, I e II) são situações frequentes de improbidade administrativa e deixar de prevê-las constitui uma amputação legislativa muito grave. Retirar o descumprimento às exigências de acessibilidade (Lei 8.429, art. 11, IX) é desumano em face das pessoas com deficiência e atenta contra o compromisso internacional assumido pelo Brasil com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, devido à qual o dispositivo foi inserido pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015). Eliminar a referência à transferência irregular de recursos da prestação de serviços da área de saúde às entidades privadas (Lei 8.429, art. 11, X) representa amenizar tal ilicitude – de forte potencial no contexto atual das parcerias – justamente numa área prioritária como a da saúde pública; também aqui o PL 2.505/2021 navega em direção oposta à tendência legislativa mais recente (o inciso em questão foi introduzido pela Lei 13.650/2018), caracterizando evidente retrocesso.

LEGITIDADE ATIVA DIMINUÍDA: A Lei 8.429 atribui a ativação da ação por improbidade administrativa não apenas ao Ministério Público, mas também à “pessoa jurídica interessada” (art. 17), possibilitando inclusive que as pessoas políticas e entes estatais promovam o combate à improbidade. O PL 2.505/2021 mantém apenas a legitimação ativa do Ministério Público (novo art. 17) e exclui indevidamente as demais pessoas jurídicas “interessadas” de velarem pelo próprio patrimônio (público), em flagrante violação ao princípio republicano do zelo pela “coisa pública”. Note-se que a Constituição aponta a necessidade de que os diversos órgãos de Poder Público realizem seus próprios controles, ao determinar, quanto à fiscalização contábil, financeira e orçamentária, o exercício do “sistema de controle interno de cada Poder” (art. 70).

Paradoxalmente, o PL 2.505/2021 atribui um dever ao poder público, de “oferecer contínua capacitação aos agentes públicos e políticos que atuem com prevenção ou repressão de atos de improbidade administrativa” (novo art. 23-A), embora lhes pretenda retirar o dever mais importante de reprimir a efetiva prática da improbidade administrativa.

CONFLITO DE ATRIBUIÇÃO DIRIMIDO PELO CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO: Preocupado com a repetição de ações por improbidade administrativa, o PL 2.5050/2021 pretende conferir uma competência ao Conselho Nacional do Ministério Público na seguinte situação: “o ajuizamento de mais de uma ação de improbidade administrativa pelo mesmo fato, competindo ao Conselho Nacional do Ministério Público dirimir conflitos de atribuições entre membros de Ministérios Públicos distintos” (novo art. 17, § 19, III). Contudo, o rol de competências do CNMP está taxativamente fixado na Constituição e não pode ser alargado por lei. Ademais, a competência para resolver conflitos de atribuições diz respeito ao exercício funcional do Ministério Público, no qual o CNMP não pode intervir, sob pena de agredir o princípio constitucional de autonomia do Ministério Público.

SENTENÇA NÃO SUJEITA A REEXAME: É uma tendência salutar o reexame obrigatório das sentenças desfavoráveis ao interesse público. Veja-se, a propósito, o art. 19 da Lei 4.717/1965, quanto à ação popular, e, quanto à ação civil pública, o REsp 1.108.542/SC (rel. Min. Castro Meira, 19/05/2009). Em relação à ação por improbidade administrativa, também é essa a interpretação mais adequada. A questão está para ser dirimida pelo Superior Tribunal de Justiça (Tema Repetitivo 1.042). Todavia, o PL 2.505/2021 propõe o contrário – que não se aplica “o reexame obrigatório da sentença de improcedência ou de extinção sem resolução de mérito” (novo art. 17, § 19, IV) –, desguarnecendo, uma vez mais, o combate judicial à improbidade.

PRESCRIÇÃO: A Lei 8.429 é sábia ao estabelecer prazo prescricional para a propositura da ação judicial, contado “após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança” (art. 23, I), em vista da possibilidade de o titular do mandato, cargo ou função interferir no descobrimento e na informação da improbidade. Nesse ponto, o PL 2.505/2021 retrocede ao desconsiderar essa posição de poder do agente público ou servidor e propor um prazo único de “8 (oito) anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência” (novo art. 23). Tal prazo mostra-se em descompasso gritante com a duração dos mandatos eletivos (e dos cargos e funções cuja nomeação os acompanha), os quais com frequência atingem oito anos, inclusive por conta da possibilidade de reeleição. Além disso, as instâncias de controle, tanto internas quanto externas, muitas vezes não reúnem condições de levantar os fatos e articular a ação judicial em menos tempo.

A apuração de improbidade administrativa é, muitas vezes, uma corrida contra o tempo. O objetivo – inclusive para garantir que o demandado não enfrente uma ação inconsistente – é a tutela do patrimônio público (em sentido amplo), cuja lesão não deve ser facilmente superada, conforme indica a Constituição ao estabelecer a imprescritibilidade das ações de ressarcimento (art. 37, § 4º). O PL 2.505/2021 caminha em sentido contrário ao prever o breve prazo de 180 dias para a suspensão do prazo prescricional das ações de improbidade administrativa (novo art. 23, § 1º) e ainda, incoerentemente, admitir a possibilidade de prorrogação do prazo do respectivo inquérito civil por mais 180 dias, mas desta vez sem suspensão do prazo prescricional (novo art. 23, § 2º). Nessa linha, o PL 2.505/2021 confere o prazo muito exíguo de 30 dias, da conclusão do inquérito, para a propositura da ação (novo art. 23, § 3º), embora, incoerentemente, cobrem-se exigências rigorosas da petição inicial (novo art. 17, § 6º).

Em conclusão, os pontos abordados indicam que o PL 2.505/2021 não deve ser aprovado pelo Senado Federal, pois esmorece o combate judicial à improbidade administrativa, piora o tratamento atualmente conferido pela Lei 8.429/1992 e não condiz com o sentido estabelecido pela Constituição de 1988.

* Walter Claudius Rothenburg é Procurador Regional da República, livre-docente em Direitos Humanos pela USP, doutor e mestre em Direito pela UFPR e pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II

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