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Nota em defesa dos direitos territoriais indígenas

Nota em defesa dos direitos territoriais indígenas

Brasília, 08/06/2021 - Ante a iminência do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Recurso Extraordinário 1.017.365 e da Ação Cível Originária (ACO) 1100, a Associação Nacional de Procuradores da República - ANPR vem a público manifestar o seu apoio à efetivação plena dos direitos territoriais indígenas e ressaltar a necessidade do afastamento de teses ou tentativas que os restrinjam.

A Constituição de 1988 apresenta uma diretriz clara para a concretização desses direitos, ao reiterar e aprofundar previsões contidas em Constituições anteriores. O art. 231 ressalta o caráter originário dos direitos territoriais, cujo reconhecimento independe da efetivação dos processos administrativos de demarcação. Embora a regularização formal dos territórios seja importante para garantir a segurança jurídica e consolidar os direitos em questão, os processos demarcatórios apenas declaram uma realidade já existente, a qual possui precedência sobre outros títulos que eventualmente incidam nas áreas (art. 231, § 6º).

O texto constitucional não estabeleceu qualquer marco temporal para o reconhecimento desses direitos. Além disso, não há sentido em prever uma limitação do gênero, dado o histórico de deslocamentos forçados, remoções e violências a que estiveram submetidos os povos indígenas. Até 1988, esses grupos eram tratados juridicamente como inferiores, fadados ao desaparecimento, incapazes do ponto de vista civil e sujeitos ao regime tutelar pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

A Assembleia Constituinte e a mobilização dos povos indígenas contribuíram para a formulação da norma constitucional, por meio da qual o Estado brasileiro compromete-se a acertar contas com uma dívida histórica com os povos originários. Identidades que estavam sufocadas puderam finalmente afirmar-se e reivindicar seus territórios, denunciando os esbulhos que sofreram ao longo dos tempos – e que sofrem, em muitos casos, até hoje.

Ao longo dos últimos 33 anos, houve avanços. Territórios foram demarcados, políticas públicas foram desenvolvidas. Mas há ainda muita resistência à implementação dos direitos territoriais de diversas etnias. A tentativa de aplicação da tese inconstitucional do marco temporal representaria o esvaziamento desses direitos por meio de uma interpretação restritiva do texto constitucional.

A tentativa de aplicar a tese do marco temporal a outras terras indígenas, visando exigir a presença física de indígenas em 5 de outubro de 1988, já foi rechaçada pelo próprio STF no julgamento de embargos de declaração do Caso Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR) e viola longa e sólida jurisprudência da Corte, que jamais legitimou atos de violência e esbulho.

Além disso, o marco temporal desconsidera o histórico constitucional de afirmação dos direitos territoriais indígenas, assegurados desde a Constituição de 1934. Tal entendimento tampouco encontra ressonância no Direito Internacional dos Direitos Humanos, seja por inúmeras decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, seja pelos diplomas que tratam da matéria, a exemplo da convenção nº 169 da OIT, da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Mesmo assim, desde então, há uma série de investidas administrativas para estender a tese a todos os casos, como se depreende do Parecer Normativo Vinculante nº 01/2017/GAB/CGU/AGU, publicado pela Advocacia-Geral da União, em 19 de julho de 2017, com aprovação do Presidente da República, que foi criticado explicitamente por ministros na sessão de julgamento das ACOs nº 362 e 366.

Ao longo de vários anos de atuação institucional em defesa dos direitos indígenas, o MPF consolidou vasto e firme entendimento sobre o tema, por meio da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, consubstanciado, entre outros documentos, na Nota Técnica nº 02/2018-6CCR e nos enunciados da 6ª CCR 37 e 38.

O STF tem um encontro marcado com a história. A pandemia tem mostrado como a omissão do Estado brasileiro no reconhecimento dos territórios indígenas gera riscos de invasões e violência contra os povos indígenas. Afastar a pretensão de limitar os direitos territoriais é um passo fundamental na concretização da Constituição.

Ubiratan Cazetta
Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República

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