De qual carreira deve ser escolhido o Procurador-Geral da República?

A conclusão do processo democrático da lista tríplice para o cargo de Procurador-Geral da República (PGR), no último dia 18 de junho, com a participação voluntária de mais de 82% de todos os procuradores e procuradoras da República de nosso país, despertou questionamentos sobre a possibilidade de o presidente nomear para o cargo um membro que não fosse da carreira do Ministério Público Federal.

A matriz constitucional da dúvida reside no artigo 128, § 1º, da Constituição da República, ao afirmar que “o Ministério Público da União tem por chefe o procurador-geral da República, nomeado pelo presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de 35 anos [...]”, pois “as funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira” (art. 129, § 2º).

O questionamento surge a partir da interpretação literal do trecho destacado, do qual se extrai que o PGR, chefe do Ministério Público da União (MPU), deva ser integrante da carreira maior de 35 anos, mas, ao contrário do MPU, que possui seu desenho institucional no inciso I do mesmo art. 128 da Constituição da República, estruturado em quatro “carreiras” (mesma expressão usada no art. 130-A, inc. II): do Ministério Público Federal (MPF), do Ministério Público do Trabalho (MPT), do Ministério Público Militar (MPM) e do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), não consta do texto constitucional qual seria a carreira do PGR.

Em se tratando dos Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal, a Constituição também fez uso da expressão “dentre integrantes da carreira” para serem nomeados procuradore(a)s-gerais de Justiça (PGJ, art. 128, §2º), “na forma da lei específica”, mas como há apenas uma carreira do Ministério Público por estado da Federação, não despertou qualquer dúvida sobre a origem do PGJ.

A compreensão acerca de qual carreira deva ser o(a) PGR, então, passa necessariamente pela lei que regulamentou o Ministério Público da União e todos os seus ramos, o Estatuto do Ministério Público da União (Lei Complementar nº 75/93), tal como se deu com a lei que regulamentou os Ministérios Públicos dos Estados (Lei 8.625/93).

Pois bem, o Estatuto do MPU foi todo desenhado com separação clara das funções exercidas pelos membros de cada uma de suas quatro carreiras, como expressamente anunciou no seu capítulo X (das carreiras), com clara determinação de que “as carreiras dos diferentes ramos do Ministério Público da União são independentes entre si, tendo cada uma delas organização própria, na forma desta lei complementar” (art. 32); “as funções do Ministério Público da União só podem ser exercidas por integrantes da respectiva carreira, que deverão residir onde estiverem lotados” (art. 33); e “a lei estabelecerá o número de cargos das carreiras do Ministério Público da União e os ofícios em que serão exercidas suas funções” (art. 34).

Evidente, portanto, seja do texto constitucional, seja da própria lei complementar que o regulamentou, que não existe uma carreira do MPU, mas quatro carreiras independentes, com funções e organização próprias. Então, reformulando-se o questionamento: de qual dessas quatro carreiras do MPU deve ser escolhido o PGR?

A fonte da solução para essa dúvida reside, do mesmo modo, no Estatuto do MPU. Nele, encontramos que:

- o vice-presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal, órgão do MPF ocupado exclusivamente por membros da carreira do MPF, exercerá o cargo vago de PGR, até o provimento definitivo (nomeação pelo presidente da República) (art. 27 e 54);

- o PGR é órgão da carreira do Ministério Público Federal, tal como o mencionado Conselho Superior do Ministério Público Federal onde são membros natos os subprocuradores-gerais da República, os procuradores regionais da República e os procuradores da República (art. 43 e 54);

- para ser membro da carreira do Ministério Público Federal o cidadão deve ser aprovado em concurso de provas e títulos para o cargo inicial de procurador da República (art. 44 e art. 129, §3º da Constituição); e

- o PGR é o chefe do Ministério Público Federal (art. 45), exercendo as diversas funções exclusivas dos membros da carreira (art. 48 a 51).

Se não bastasse a clareza do Estatuto do MPU ao estabelecer o procurador-geral da República como membro da carreira do MPF, conforme capítulo específico do Ministério Público Federal, as demais carreiras do MPU possuem seus próprios procuradores-gerais, que também são chefes de órgãos das outras três carreiras (MPT, MPM e MPDFT), tal como o PGR é chefe e órgão da carreira do MPF: o Procurador-Geral do Trabalho (art. 85, inc. I e 87), o Procurador-Geral de Justiça Militar (art. 118, inc. I e 120) e o Procurador-Geral de Justiça do Distrito Federal e Territórios (art. 153, I e 155).

O Supremo Tribunal Federal, ademais, ao julgar a ADI 2874 declarou inconstitucional a possibilidade de nomeação, de caráter transitório, de qualquer pessoa para o exercício das funções do Ministério Público, consequentemente impondo o respeito à autonomia e independência das carreiras do Ministério Público no exercício de suas funções legalmente estabelecidas. Não se admite, portanto, que o membro de uma das quatro carreiras autônomas exerça funções, ainda que temporárias, privativas de outra das carreiras do MPU.

O legislador, corretamente, escolheu a carreira dos membros do Ministério Público Federal para que dela saísse o(a) Procurador Geral da República. Essa escolha é justificada, sobretudo, pelo extenso rol de matérias em que atuam os membros do Ministério Público Federal, consoante a Lei Complementar Federal nº 75/1993. Não há, para o MPF, uma restrição temática específica, como ocorre para a carreira do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Militar, por exemplo. 

Assim, desde a promulgação da Constituição da República de 1988 todos os Procuradores-Gerais da República são oriundos da carreira do Ministério Público Federal, onde ingressaram pelo cargo inicial de Procurador de República:

- Aristides Junqueira Alvarenga (mandato 1989/1995), ingressou na carreira em 1973;

- Geraldo Brindeiro (mandato 1995/2003), ingressou na carreira em 1975;

- Cláudio Lemos Fonteles (mandato 2003/2005), ingressou na carreira em 1973;

- Antônio Fernando Barros e Silva de Souza (mandato 2005/2009), ingressou na carreira em 1975;

- Roberto Monteiro Gurgel Santos (mandato 2009/2013), ingressou na carreira 1982;

- Rodrigo Janot Monteiro de Barros (mandato 2013/2017), ingressou na carreira em 1984; e

- Raquel Elias Ferreira Dodge, atual PGR, ingressou na carreira em 1987.

 

 Artigo publicado originalmente no portal HuffPost, em 3 de julho de 2019

logo-anpr