Por uma lei que puna, de fato, o abuso de autoridade

As entidades representativas do Ministério Público brasileiro ajuizaram em conjunto, no início deste mês, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) com o intuito de invalidar artigos da Lei nº 13.869/2019, conhecida como a nova Lei de Abuso de Autoridade, a qual entrará em vigor no início do ano vindouro. Outras ações semelhantes tiveram como autoras entidades representativas da magistratura e dos auditores fiscais.

O intuito de todas elas, como a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), ao contestar pontos específicos do referido diploma, é o de garantir que a legislação aprovada pelo Congresso Nacional puna, de fato, abusos de autoridade, não interferindo em atos regulares adotados por agentes públicos no cumprimento de suas missões de combater a corrupção e a criminalidade, como sinalizam diversos artigos presentes na lei.

Impende frisar que as associações representativas somam-se às vozes da sociedade que pedem a melhor regulamentação sobre o abuso de autoridade.

A legislação em vigor no país data de 1965, é pré-constitucional e foi aprovada durante um período de exceção, demandando, claramente, atualização e aperfeiçoamentos.

A Lei 13.869/2019, no entanto, longe de trazer os avanços necessários, expõe atos cotidianos de procuradores, magistrados, auditores e policiais a risco de criminalização, a partir de conceitos subjetivos, vagos, imprecisos, indefinidos.

É o caso do art. 9º, que interfere diretamente na livre convicção dos magistrados no momento de decidir sobre a liberdade ou a prisão de alguém, com a “ameaça” de punição para aqueles que decidirem “em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. Bem sabem os que atuam no sistema judicial as notórias divergências que ocorrem em processos de habeas corpus, por exemplo, com a frequente reversão, por instâncias superiores, de decisões proferidas por juízes a partir de compreensões diversas, defensáveis e legítimas.

Também serve de exemplo o artigo 30, que pune o impulsionamento da investigação criminal ou civil ou mesmo a propositura das ações judiciais sem justa causa fundamentada, conceito esse manifestamente vago, aberto, subjetivo.

É muito comum que essa discussão, típica da seara judicial, comporte também, pelo uso dos inúmeros recursos e instâncias previstos no país, uma sequência de decisões judiciais diferentes.

Vale destacar, ainda, os artigos 27 e 31, que interferem diretamente nas investigações realizadas em todo o país, o primeiro dificultando a sua abertura em hipóteses nas quais as vítimas têm receio de se expor ao reportar os fatos, como ocorre em boa parte dos crimes para os quais são essenciais os sistemas de apresentação de denúncias anônimas, e o segundo ao dificultar a prorrogação de investigações complexas, especialmente aquelas que envolvem as organizações criminosas e os crimes do colarinho branco.

E assim segue a lei, em diversas outras passagens, repleta de termos e conceitos imprecisos, indefinidos, subjetivos – sem justa causa, manifestamente descabida, fundados indícios, por prazo razoável, estender injustificadamente etc., – violando um princípio constitucional basilar nos Estados Democráticos de Direito, que é o princípio da legalidade e, particularmente, a taxatividade dos tipos penais, que impõe clareza e objetividade na definição dos crimes para que todos saibam, de antemão, como devem ou não devem agir, o que podem ou não podem fazer.

Assim, em nome da segurança jurídica e do bem-estar da sociedade, é necessário combater boa parte dos dispositivos aprovados pelo Congresso Nacional, alguns dos quais chegaram a ser vetados pela Presidência da República, exatamente em razão de sua inconstitucionalidade, mas acabaram derrubados pelo Poder Legislativo.

A segurança jurídica, no caso em análise, reside na equalização entre o combate aos abusos de autoridade de agentes públicos e a necessária liberdade funcional para fazer interromper o escoadouro de recursos públicos e a violência que resultam da corrupção e da criminalidade. Tal equilíbrio não está presente na Lei nº 13.869/2019.

Ao contrário, o que a legislação produzirá será o cerceamento da atuação de autoridades que representam a defesa da sociedade frente à corrupção e à criminalidade.

É fato que, intranquila, é uma sociedade que convive com abusos de poder emanados daqueles que possuem o monopólio da força e do direito de punir.

Tão ou mais intranquila, no entanto, é uma sociedade que vive em um país onde, a partir da nova lei aprovada sob o falso pretexto de coibir abusos, os profissionais de instituições essenciais ao sistema de justiça, como o Ministério Público, o Poder Judiciário e as forças policiais correm risco efetivo de serem representados, investigados ou processados por atuarem regularmente, com independência, respeitando a livre convicção sobre os fatos trazidos à sua apreciação.

Em síntese, uma porta aberta para a impunidade. É assim, verdadeiramente, que a sociedade e os cidadãos ficam desprotegidos.

 

* Artigo publicado originalmente no blog de Frederico Vasconcellos, na Folha de S.Paulo

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