Direitos humanos e proteção da Amazônia: um caso no MPF

Preservar a Amazônia é também proteger direitos humanos local, regional, nacional e internacionalmente

Há mais de trinta anos, o poder constituinte originário brasileiro assegurou a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (art. 225, CF). A ideia não era de todo original: ela já era intuída na Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano, de 1972, e fundamentou os debates que conduziram à previsão, no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, do direito a um meio ambiente saudável, conforme artigo 11 do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – o Protocolo de San Salvador.

A ideia da jusfundamentalidade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sadio, apto e necessário a proporcionar ao ser humano uma vida digna, inclusive sob a dimensão ecológica, portanto, não é nova.

Nova, contudo, é a proporção em que se fez sentir, em 2020, a interdependência entre os direito à vida, à saúde e à integridade física, por um lado, e, por outro lado, esse direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de que já falava o constituinte na década de 1980.

Com o mundo e, particularmente, o Brasil vivenciando uma profunda crise sanitária, relacionada ao uso não sustentável de recursos naturais e aos efeitos desse desequilíbrio sobre a circulação de patologias interespécies, são reforçados o caráter fundamental do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e sua essencialidade para a existência e concretização de outros direitos.

De fato, o ano de 2020 parece ser um marco histórico: doravante, ou se admite a interdependência proclamada nacional e internacionalmente, há mais de trinta anos, entre o direito a um meio ambiente sadio e os demais direitos humanos, ou se caminha para um mundo em que direitos humanos constituem mera retórica, por ausência de condições fático-ambientais que permitam o efetivo desenvolvimento pessoal de homens e mulheres de todo o planeta.

No Brasil, essa encruzilhada existencial é bem representada pelo desafio de enfrentamento ao desmatamento na Amazônia. Principal fonte de emissão de gases de efeito estufa em território brasileiro[i], o desmatamento, associado a mudanças do uso do solo, contribui para alteração dos regimes hidrológicos em toda a região centro-sul da América do Sul, bem como para o fortalecimento das mudanças climáticas globais. O aumento de temperaturas, o crescimento da incidência de secas e de inundações e a perda de biodiversidade são alguns efeitos esperados e, em alguns casos, já concretizados dessas mudanças climáticas, com todas as violações a direitos humanos a tais fenômenos inerentes.

Com a intensificação, também, das queimadas na Amazônia, os olhos do mundo voltaram-se para o Brasil e, no Ministério Público Federal, foi instaurado um inquérito civil para acompanhamento e avaliação da suficiência e adequação das políticas públicas mantidas pela União Federal e suas autarquias para enfrentamento ao desmatamento no bioma amazônico.

Em 2020, com o advento da pandemia de covid-19 e a divulgação, pelo INPE, dos primeiros dados consolidados sobre desmatamento no mês de março, logo se constatou que desmatadores e infratores ambientais em geral não estavam em home office. Ao contrário: as curvas de desmatamento seguiram crescentes, assim como os relatos de indígenas sobre a presença de infratores em seus territórios tradicionais.

De outra parte, colhiam-se no inquérito civil relatos de diminuição dos esforços de fiscalização do Estado Brasileiro sobre atividades ambientalmente nocivas na Amazônia. As ações de fiscalização ambiental haviam sido declaradas serviços essenciais pelo Decreto n. 10.282/2020; sem embargo, os órgãos encarregados de ações de comando e controle não se mostravam prontos a manter seus esforços repressivos. Atividades já planejadas por IBAMA e ICMBio foram canceladas ou adiadas, e o Estado como um todo se retraiu. Os infratores festejaram: em março e abril, a floresta seguiu vindo abaixo em taxas gritantes.

Esse foi o contexto que motivou pedido de tutela provisória de urgência em Ação Civil Pública direcionada pelo MPF, por meio da Força-Tarefa Amazônia, à União Federal, IBAMA, ICMBio e FUNAI, almejando a adoção de medidas imediatas para contenção de infratores ambientais na Amazônia. Em especial, postulou-se a implementação de bases em dez áreas críticas quanto à incidência de ilícitos ambientais, conforme mapeamento realizado pelo próprio IBAMA, a partir de dados do INPE.

Vale frisar que o Plano Anual de Proteção Ambiental do IBAMA, elaborado para o ano de 2020, previa ações de fiscalização do desmatamento na Amazônia como prioritárias, e sinalizava a manutenção de equipes permanentes nessas áreas críticas ao menos no período de maior incidência de ilícitos ambientais do ano – entre abril/maio e outubro/novembro. Esse planejamento via-se ameaçado pela pandemia, dada a retração das esferas fiscalizatórias ambientais, simultânea ao avanço dos infratores pela floresta, resultando nas crescentes taxas de desmate verificadas então.

A dimensão em que esse cenário relacionava-se à violação de direitos humanos era – e é – enorme.

Localmente, o desmatamento avança sobre territórios tradicionais, privando indígenas e outros povos e comunidades de seus meios de subsistência, de seus modos de vida imemoriais e de suas próprias identidades, invariavelmente associadas à terra e a suas riquezas nativas. Os mecanismos da grilagem, fenômeno vinculado ao desmatamento em glebas públicas, contribuem para a violência no campo que, em pleno século XXI, segue fazendo vítimas fatais. As populações rurais e urbanas amazônicas sujeitam-se a agravos de saúde intensificados pelas queimadas: conforme explicado pelo MPF em juízo, a partir de estudo da Fiocruz, “nas áreas mais afetadas pelo fogo na Amazônia em 2019, o número de crianças internadas com problemas respiratórios dobrou”[ii].

No sul da Amazônia, o desmatamento já provocou alterações de microclima que postergaram o início da estação chuvosa e diminuíram a duração da temporada agroprodutiva[iii]. A relação entre o desmatamento e os ciclos hidrológicos que abastecem as bacias hidrográficas do centro-sul do Brasil e da América do Sul é demonstrada em artigo já clássico de Carlos Nobre e Thomas E. Lovejoy[iv] – e as situações de estresse hídrico no centro-oeste e sudeste brasileira podem ser já sinais do desequilíbrio desse sistema de abastecimento.

No contexto de pandemia, todas essas violações a direitos atreladas ao fenômeno do desmatamento são reforçadas, ainda, pelo fato de que a presença de infratores na floresta facilita a disseminação do novo coronavírus. Povos indígenas são mais vulneráveis a doenças respiratórias, por suas características imunológicas particulares. A ausência deliberada do Estado em ações de comando e controle para contenção de infratores na floresta tem, assim, consequências trágicas: é a própria existência desses povos que está em jogo.

O quadro de desmatamento na Amazônia e suas repercussões sobre direitos humanos não poderia deixar de mobilizar o Ministério Público Federal, seja para a exigência e acompanhamento da implementação das adequadas políticas públicas, como no caso citado, seja por meio de medidas voltadas à responsabilização individual de desmatadores, a exemplo do Projeto Amazônia Protege, merecedor de análise em artigo próprio.

Nesse cenário que se desenha, em que os direitos humanos de todos se vêem ameaçados pela sombra de um meio ambiente desequilibrado, vale a conclusão exposta pela Corte Constitucional dos Países Baixos no julgamento paradigmático do caso Urgenda v. Netherlands: não há redução [de emissões de gases de efeito estufa, ou, para o Brasil, de desmatamento] que, por pequena, seja negligenciável[v]. São os direitos de todos que estão em jogo numa luta existencial, cabendo ao Ministério Público cumprir seu papel na defesa dos ecossistemas que nos permitem estar aqui.

Ana Carolina Haliuc Bragança é procuradora da República no Amazonas e coordenadora da Força-Tarefa Amazônia. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo.

* Artigo publicado originalmente no site Jota 


[i] As mudanças de uso do solo respondem por 44% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil. Para mais informações, v. OBSERVATÓRIO DO CLIMA (Brasil).SEEG 2019 – Relatório-Síntese. Análise das Emissões Brasileiras de Gases de Efeito Estufa e Suas Implicações para as Metas do Brasil: 1970-2018. Disponível em: https://seeg-br.s3.amazonaws.com/2019-v7.0/documentos-analiticos/SEEG-Relatorio-Analitico-2019.pdf Acesso em 18.04.2020.

[ii] v. V. https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-mostra-o-impacto-das-queimadas-na-saude-infantil Acesso em 19.04.2020.

[iii] v. Marcelo C.C. Stabile, et al., Land Use Policy, https://doi.org/10.1016/j.landusepol.2019.104362

[iv] v. Carlos Nobre e Thomas E. Lovejoy, Science Advances, 21 Feb 2018, Vol. 4, no. 2, DOI: 10.1126/sciadv.aat2340

[v] DUTCH SUPREME COURT. Urgenda v. Netherlands. ECLI:NL:HR:2019:2007. Disponível em: http://climatecasechart.com/non-us-case/urgenda-foundation-v-kingdom-of-the-netherlands/ Acesso em 30.07.2020.

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