Direitos Humanos e empresas: assimetrias e responsabilidades

Proteção dos direitos humanos não pode ser interpretada como uma faculdade ou mera responsabilidade social voluntária

 O conjunto de normas de proteção e promoção dos direitos humanos foi desenvolvido tendo o Estado como figura central. O Poder Público tanto seria o responsável por violações a direitos individuais e liberdades que deve ser contido, como também o promotor de direitos sociais, econômicos e culturais que deve ser impulsionado. Isso fazia, e ainda faz, todo o sentido, pois, afinal, teoricamente é o Estado quem regula a vida social e detém o dever de implementar o programa constitucional.

Ocorre que, cada vez mais, os Estados estão se tornando menos importantes e potentes em relação aos agentes econômicos. Entre as 100 maiores entidades econômicas globais, 69 são empresas e apenas 31 são Estados, segundo estudo da organização não-governamental Global Justice Now (dados de 2016). Esse enorme poder econômico das corporações faz com que tenham indisputável poder político, especialmente após a globalização.

De fato, para atrair investimentos, os Estados se embrenham numa “corrida para o fundo do poço”, na qual competem entre si como os locais “mais baratos” para o negócio. Isso impõe sacrifícios tanto no plano tributário (guerra fiscal) – e consequentemente na capacidade do Estado de promover direitos sociais e econômicos – como no plano das obrigações de fazer ou não-fazer das empresas, notadamente nos campos ambiental e de respeito aos direitos humanos.

É fato que empresas não têm – e nem precisam ter – por objetivo promover os direitos humanos. O papel delas é desenvolver atividades econômicas e, com base nelas, remunerar os sócios e acionistas, ou seja, ter lucro. Esse é um elemento essencial do sistema político-econômico albergado na Constituição brasileira (assim como nas constituições de todos os países capitalistas) sob o princípio da livre iniciativa. Evidente que esse propósito é lícito e estimulado pelo Estado.

Entretanto, o objetivo de lucro impõe às administrações das empresas uma enorme pressão para minimizar custos e despesas e, em consequência, maximizar ganhos. Essa lógica comprime os investimentos ou gastos em garantia e proteção dos direitos humanos, especialmente quando o marco normativo ou a fiscalização das regras existentes são fracos.

Portanto, enquanto a proteção dos direitos humanos não constituir uma obrigação própria das empresas, cuja inobservância acarrete sanções materiais e imateriais, a defesa dos direitos humanos sempre estará em risco diante das demandas econômicas e financeiras das empresas. A proteção dos direitos humanos não pode ser interpretada como uma faculdade ou mera responsabilidade social voluntária. Ela deve estar no cerne de todo e qualquer processo decisório, nem que seja por decorrência dos riscos ao negócio advindos de sua potencial violação.

No âmbito internacional, duas grandes iniciativas, sob a liderança do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, são desenvolvidas em torno do tema de Direitos Humanos e Empresas (aliás, na linguagem internacional, a expressão é business and human rights, na qual se nota a ênfase nos negócios, e não os direitos humanos; nós preferimos a expressão na ordem inversa, tal como no título deste artigo).

A primeira deu origem à criação do Grupo de Trabalho Empresas e Direitos Humanos, cujo mandato se refere à disseminação e implementação dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, elaborados pelo professor John Ruggie e aprovados pelo Conselho em 2011. A segunda diz respeito à proposição e discussão de um tratado internacional sobre o tema, com normas vinculantes para Estados e empresas.

O Ministério Público Federal tem atuado expressivamente nesse campo, tanto na tutela ambiental e indígena, como na defesa dos direitos humanos, valendo citar os casos de: rompimento das barragens de Brumadinho e Fundão, operadas pelas empresas Samarco e Vale, em Minas Gerais; construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, Pará; danos provocados em distintos locais do país e do planeta pela mineradora Vale; funcionamento sem licença ambiental da TKCSA, no Rio de Janeiro; expansão das fronteiras do agronegócio no cerrado, com expulsão dos povos tradicionais de sua terra e prejuízos ao fornecimento de água às populações urbanas e rurais; impactos ambientais e questões fundiárias relacionadas à ampliação do Porto de Suape, em Pernambuco; vazamento de rejeitos da Hydro Alunorte, no Pará; colapso geológico em bairros de Maceió/AL, relacionados à exploração de sal pela empresa Braskem.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC, em especial, constituiu um grupo de trabalho interno para monitorar a atividade do Estado na matéria e, após reflexões teóricas e interlocuções com órgãos do governo e a própria sociedade civil, emitiu a Nota Técnica nº 7/2018, na qual externou a sua visão sobre esses processos.

A Nota Técnica ressalta que os Princípios Orientadores são uma bem-vinda etapa na construção de normas mais efetivas para regular as obrigações das empresas no respeito aos direitos humanos. Entretanto, esses princípios são insuficientes. Antes de tudo, em razão de serem de adoção meramente voluntária pelos Estados e empresas. Depois, porque:

(a) passam ao largo da necessidade de se apontar a responsabilidade direta das empresas pela indução de governos a reduzirem custos sociais e exigências protetivas ao meio ambiente e aos demais direitos humanos como condição para a alocação de investimento;

(b) toleram a adoção pelas empresas transnacionais de múltiplos standards de proteção e respeito aos direitos humanos em razão da localização de seu empreendimento, em prática discriminatória e que remete ao colonialismo e ao imperialismo;

(c) não abordam a necessidade de os Estados adotarem a jurisdição universal para apreciar casos de violações aos direitos humanos por corporações transnacionais;

(d) enfatizam a adoção de políticas voluntárias pelas empresas, sem reforçar o conceito de que toda violação de direitos humanos deve ser reparada integralmente, mediante restituição, compensação, reinserção e garantias de não-repetição;

(e) desenvolvem o tema com privilégio à visão e linguagem das empresas, em detrimento daquela das vítimas e dos atingidos; e

(f) carecem de previsões da obrigação das empresas desenvolverem seus empreendimentos apenas após consulta prévia, livre e informada às populações atingidas.

Entendemos que, no Brasil, mais importante do que elaborar um Plano de Ação Nacional baseado nos Princípios Orientadores, tal como postula o Grupo de Trabalho da ONU, seria a definição de política pública abrangente em direitos humanos e empresas.

Essa política pública deve ser construída em discussão com os múltiplos atores interessados – e sobretudo com os afetados e atingidos por atividades empresariais – e incluiria avanços legislativos que estabeleçam um conjunto normativo vinculante e compatível com a promoção do desenvolvimento sustentável.

Por outro lado, a celebração de uma Convenção Internacional sobre Direitos Humanos e Atividades de Corporações com normas vinculantes é medida indispensável, tendo em vista que o direito doméstico de praticamente todos os países não é suficiente para conter e regular o poderio econômico de grandes corporações.

Somente a adoção de normas internacionais que fortaleçam o respeito, a promoção, a proteção e o cumprimento dos direitos humanos no contexto de atividades empresariais de caráter transnacional e garantam efetivo acesso à justiça e a medidas de reparação das vítimas de violações aos direitos humanos no contexto de atividades empresariais poderá reduzir a assimetria de forças existente entre empresas, populações atingidas e Estados.

MARLON ALBERTO WEICHERT – Procurador Regional da República. Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Adjunto (2016-2020). Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP.

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