Sistema de inclusão das mulheres na política: a fiscalização da cota de gênero

Presença feminina vive quadro de sub-representação política: apenas 10% na Câmara dos Deputados e 16% no Senado

 “A coisa mais difícil é a decisão de agir, o resto é mera tenacidade.” Amelia Earhart

O Tribunal Superior Eleitoral proferiu este ano decisão que fortalece a fiscalização da cota de gênero nas eleições proporcionais. A corte eleitoral decidiu que a não participação dos suplentes nas ações eleitorais que investigam ilegalidades no atendimento das cotas, as chamadas “candidaturas laranjas”, não acarreta a nulidade da ação.Significa dizer que toda a lista de candidatos proporcionais que tenha incluído candidaturas femininas fictícias poderá ser invalidada, ainda que candidatos não eleitos não tenham participado da ação.[1]O assunto chegou à Corte em razão da atuação do Ministério Público Federal, pela Procuradoria da Regional Eleitoral no Estado de Mato Grosso, que questionou o entendimento do Tribunal Regional no sentido de extinguir dezenas de ações que questionavam candidaturas fictícias no Estado.Tal decisão esvaziava o minucioso trabalho feito por Promotores de Justiça nas eleições municipais de 2016, que colheram provas testemunhais e documentais de que diversas mulheres constaram como candidatas para atender a “pedido” ou “favor” feito por homens, alguns deles seus patrões ou parentes. Via de regra, a inquietação em se “preencher a chapa” com a cota de gênero não surgia no momento da realização das reuniões partidárias em ano não eleitoral, nas convenções ou, ainda, em eventos voltados a conhecer e atrair mulheres para a pauta do partido político.

Pelo contrário, a preocupação em observar formalmente a lei e fazer constar o nome de mulheres no Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (DRAP) era manifesta às vésperas do pleito, demonstrando descuido ainda maior com valor inclusão de gênero no esquema fisiológico partidário.

Em um país ainda muito marcado pelo mandonismo e patrimonialismo nas relações sociais, não há espaço para a desmedida credulidade de que os que já ocupam posições de poder, na maioria homens, abrirão flancos gratuitos para a inclusão das mulheres.

É nesse contexto que o Poder Judiciário detém acentuado papel contramajoritário, exercendo sua vocação de agente implementador de equidade, instância medular no processo de reconhecimento.

Na linha do entendimento que prevaleceu no TSE, os suplentes têm mera expectativa de direito a assumir uma cadeira no parlamento, motivo pelo qual sua situação é diversa da dos eleitos, que perdem o mandato em caso de anulação de toda a lista proporcional. Assim, embora os suplentes possam integrar o polo passivo, se quiserem auxiliar na defesa da validade da lista, sua ausência não pode acarretar a nulidade do processo.

A questão desvela sinais da estruturação do que chamamos de “sistema de implementação da equidade de gênero na política brasileira”, inaugurado com Lei nº 9100, em 1995, que previu a ação afirmativa de uma cota mínima de 20%, e ampliado em 1997, com a Lei nº 9504/1997, que indicou a reserva de 30% das candidaturas dos partidos ou coligações para cada sexo em eleições proporcionais, ou seja, para os cargos de vereador(a), deputado(a) estadual e deputado(a) federal.[2]

Além da ação afirmativa prevista em lei, o sistema atualmente conta com outros instrumentos voltados a assegurar candidaturas femininas viáveis e competitivas, o que perpassa a distribuição de, ao menos, 30% dos recursos do Fundo Eleitoral[3] e a aplicação da cota de gênero também nas disputas internas a cargos de diretórios nacionais, regionais e municipais.[4]

O direcionamento paradigmático do TSE, afirmando a indispensabilidade da inclusão de gênero no âmbito intrapartidário, confere sustentabilidade aos demais instrumentos do sistema, pois é na cúpula dos partidos que ocorrem as decisões estratégicas, como a distribuição de recursos e a captação de nomes factíveis à disputa eleitoral.

Também reafirma que a cota de gênero não é mera declaração de intenções e sua inobservância implicará na invalidação de toda a chapa, com a cassação dos candidatos homens beneficiados com a fraude.

É de se lembrar que, no Brasil, a presença feminina vive um quadro de sub-representação política, em que as mulheres constituem apenas 10% do total de parlamentares da Câmara e 16% no Senado Federal, embora representem a maioria da população.

O movimento sufragista brasileiro, liderado por mulheres como Celina Guimarães, Alzira Soriano e Bertha Lutz[5], lutou tão intensamente pelo direito da mulher ao voto que conseguiu sua aprovação em 1932, muito antes de países como Grécia, Argentina, França, Japão e Suíça, que hoje estão à frente do Brasil na inclusão das mulheres na vida política.

Isso mostra que não basta a mera previsão legal de uma ação afirmativa ou a proclamação de direitos na Constituição ou Convenções Internacionais. Talvez a grande diferença entre nós e esses outros países seja a importância coletivamente atribuída a valores como pluralidade e igualdade substantiva, o que repercute em sincero esforço para reverter o histórico de exclusão das mulheres dos espaços públicos.

 

[1] AgR no REsp nº 68480 / AgR no REsp nº 68565 – Cuiabá/MT, relator min. Luís Roberto Barroso, julgados em 28/05/2020.

[2] Cuja legitimidade foi reconhecida pelo STF no julgamento da ADI nº 5617STF, Tribunal Pleno, ADI 5617/DF, rel. min. Edson Fachin, julgada em 15/03/2018, DJe 08/03/2019.

[3] TSE, Consulta nº 060025218.2018.6000000, rel. min. Rosa Weber, 22/05/2018.

[4] TSE, Consulta nº 0603816-39.2017.6.00.0000, rel. min. Rosa Weber, 19/05/2020.

[5] Celina Guimarães foi a primeira eleitora da América Latina. Alzira Soriano a primeira prefeita municipal, em Lajes/RN, e Bertha Lutz assumiu como deputada na Câmara Federal em 1936.

CRISTINA NASCIMENTO DE MELO – Procuradora da República. Mestre em Direito Público pela Universidade Católica de Brasília. Foi procuradora regional eleitoral no estado de Mato Grosso durante as eleições de 2018.

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