FT Avá Guarani: defesa de direitos indígenas por meio do direito penal

Como o MPF conseguiu interromper um ciclo de violência contra indígenas no MS que agora volta a aparecer

Em 25 de novembro de 1983, no município de Antônio João, Mato Grosso do Sul, Marçal de Souza Tupã’i, um dos principais líderes do povo Guarani Ñandeva, foi assassinado por lutar pelo direito dos indígenas à terra. Quase 33 anos depois, em 14 de junho de 2016, no município de Caarapó, também no Mato Grosso do Sul, Clodiode de Souza, agente de saúde guarani-kaiowá, foi assassinado durante um ataque realizado por fazendeiros. Três décadas separam os dois assassinatos, mas a impunidade dos assassinos os aproxima!

Antes de ser morto, Marçal de Souza lutava pela Terra Indígena Campestre (Ñande Ru Marangatu), cuja demarcação até hoje não foi concluída. Passou a sofrer ameaças e, em razão disso, foi morar na Aldeia Pirakuá, também no Município de Antônio João. Mas a área era contestada pelo fazendeiro Libero Monteiro. Assim, na última sexta-feira de novembro de 1983, o líder indígena foi vítima de uma emboscada, vindo a ser assassinado com 5 tiros. Dez anos após o assassinato, os principais acusados, Libero Monteiro de Lima e Rômulo Gamarra, foram absolvidos.

Já Clodiode foi vítima, junto de outros indígenas, de um ataque no interior da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá I. Um grupo de cerca de 300 indígenas havia ocupado, no dia 12 de junho, a área atualmente denominada Fazenda Yvu, inserida no interior do território tradicional delimitado por ato do Presidente da FUNAI. Na manhã do dia 14, um comboio de caminhonetes e outros veículos avançou sobre o grupo com disparos de rojões e armas de fogo, o que resultou em 5 vítimas indígenas (Josiel Benites, de 12 anos, e Jesus de Souza, de 29 anos, atingidos no abdômen; Vaudilho Garcia, de 26 anos, e Norivaldo Mendes, de 28 anos, atingidos no tórax; e Lubésio Marques, de 43 anos, atingido por 3 tiros, um no ombro, um no tórax e outro no abdômen), além de Clodiode, que faleceu no local vítima de 2 disparos de arma de fogo. Nenhum fazendeiro sofreu ferimento[1].

Os fatos narrados acima retratam os extremos cronológicos de mais de 3 décadas de violência contra os povos indígenas no Conesul do Mato Grosso do Sul. Entre 2000 e 2016 foram 10 vítimas fatais – ao menos de que se tem notícia -, tendo ocorrido pelo menos 20 ataques a comunidades indígenas nesse período, ao lado de diversas outras ameaças.

Em junho de 2015, porém, tem início um movimento – que depois se descobriu ser articulado e muito bem organizado – entre proprietários rurais da região para expulsar violentamente indígenas de áreas retomadas, eventualmente com uso de empresas de segurança privada e pistoleiros contratados, formando verdadeiras milícias rurais. O primeiro desses casos de “auto-reintegração de posse” se deu no município de Coronel Sapucaia-MS, ocasião em que um comboio de fazendeiros avançou contra a comunidade indígena Kurusu Ambá, no mesmo local onde, 12 anos antes, foi assassinada a rezadora Xurite Lopes, fato até hoje impune. Entretanto, dessa vez os atos violentos foram praticados à luz do dia e televisionados[2]!

Cerca de 2 meses depois, em agosto de 2015, algo muito semelhante ocorreu no município de Antônio João/MS, de onde partiram fazendeiros que haviam se reunido no Sindicato Rural da cidade. O comboio adentrou às fazendas ocupadas por indígenas uma semana antes e os expulsou do local com extrema violência[3].

Os atos dessa natureza se repetiram nos meses seguintes nos municípios de Aral Moreira, Douradina, Paranhos, Iguatemi, Coronel Sapucaia e Caarapó, todos de forma muito semelhante e sugerindo algum alinhamento. A situação motivou, inclusive, a decretação de uma Ação de Garantia da Lei e da Ordem – GLO pela então presidente da República, passando o comando das forças de segurança da região para o Exército[4].

O contexto, porém, não era novo. Como visto acima, a violência contra os indígenas na região já durava anos, acumulando mortes e descrença em relação ao Estado. A diferença era que agora o movimento parecia mais organizado, sendo notadas várias semelhanças entre os ataques.

Esse fato, associado à incômoda impunidade que se perpetuava, motivou a criação, pelo Procurador Geral da República, de uma força tarefa a pedido da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais). A Força Tarefa, com atribuições criminais (2ª Câmara de Coordenação e Revisão), foi criada em setembro de 2015 e batizada de “Avá Guarani”, tendo como objetivo investigar os recentes casos de violência contra indígenas no Conesul do Mato Grosso do Sul.

Inaugurou-se, com isso, um novo modelo de investigação criminal, construído a partir das experiências dos procuradores da República envolvidos tanto em atuações criminais propriamente ditas quanto na tutela dos interesses dos povos indígenas. O auxílio de antropólogos e dos servidores do MPF também se mostrou imprescindível na definição dos caminhos a seguir no curso das investigações.

E a primeira dessas definições foi a de assumir o protagonismo das investigações, as quais foram todas conduzidas por meio de procedimentos próprios do MPF, evitando que a apuração dos fatos fosse prejudicada pela falta de contingente ou por prioridades naturais das polícias em regiões de fronteira (casos de tráfico de drogas e envolvendo investigados presos), já que a Força Tarefa tinha um fim específico.

A definição seguinte foi a respeito das diligências a serem feitas e, especialmente, sobre o modo como elas seriam realizadas. E talvez esteja aqui o principal diferencial da FT Avá Guarani: a investigação criminal conduzida por uma equipe com experiência na tutela coletiva de interesses indígenas. De fato, foi essa compreensão das peculiaridades socioculturais e políticas das comunidades indígenas vítimas de violência que levou a FT, por exemplo, a colher depoimentos dos indígenas apenas dentro do seu território tradicional, sempre na sua língua materna (com ajuda de intérpretes), antecedidos de conversas coletivas a fim de identificar as melhores fontes de informação e ouvindo, sempre, o cacique ou liderança, de modo a respeitar a hierarquia interna.

O deslocamento da equipe de investigação até o local dos fatos permitia, também, uma melhor compreensão da dinâmica dos acontecimentos, além de diminuir o espaço de tempo entre o fato e a colheita das provas, por não depender da disponibilidade da FUNAI, por exemplo, para fazer o deslocamento dos indígenas até a sede do MPF. A maior proximidade entre os depoimentos e a data dos fatos minimizou os efeitos danosos da memória e da influência externa sobre os conteúdos das provas reunidas. Além disso, os depoimentos colhidos dentro do território tradicional, sem a necessidade de as testemunhas transitarem pela cidade até a sede do MPF, deu tranquilidade aos indígenas, que puderam falar com maior segurança em razão da menor exposição. O medo de serem abordados por “pistoleiros” na volta para casa sempre foi uma constante entre os indígenas testemunhas desses ataques.

Merece destaque, também, a relação de confiança existente entre os indígenas e os integrantes do MPF que atuam na defesa das suas causas, assim como com os antropólogos que acompanhavam as diligências. Essa relação, reforçada pela presença da equipe de investigação no local dos fatos, gerava a confiança necessária para que todo tipo de informação e material probatório fosse espontaneamente fornecido ao MPF, como, por exemplo, as imagens registradas nos seus aparelhos celulares.

Tais elementos contribuíram sobremaneira para a identificação dos envolvidos, bem como para revelar a gravidade dos fatos investigados[5].

Dessa forma, com esta nova metodologia de trabalho, até meados de 2017 a FT Avá Guarani havia colhido 271 depoimentos, com cerca de 145 horas de oitivas, para as quais foram percorridos aproximadamente 18.252 quilômetros, bem como para realização de outras diligências in loco e perícias. A robustez do material probatório reunido viabilizou a quebra judicial de sigilo de dados bancários, telefônicos, telemáticos e interceptações telefônicas, além do deferimento de pedidos de prisão preventiva de grandes fazendeiros locais, algo inédito e, algum tempo atrás, totalmente improvável na região. As prisões preventivas, aliás, duraram 72 dias, tendo sido mantidas pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região e pelo Superior Tribunal de Justiça, a partir de um robusto trabalho coordenado entre os membros do MPF atuantes perante as 3 instâncias.

Quando a Força-Tarefa Avá Guarani deixou de ser sigilosa, em junho de 2016, a notícia da sua existência teve grande repercussão na imprensa, inclusive internacional, tendo a iniciativa recebido elogios públicos da Relatora Especial das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz[6], do Deputado de Portugal no Parlamento Europeu, Francisco Assis[7], e constado expressamente da Resolução do Parlamento Europeu, de 24 de novembro de 2016, sobre a situação dos Guarani-Kaiowá no estado brasileiro de Mato Grosso do Sul.

Percebe-se, enfim, que, além da metodologia investigativa desenvolvida, a atuação do MPF por meio da Força-Tarefa Avá Guarani pode evitar, em certa medida, que o Brasil venha a sofrer novas condenações em foros internacionais por desrespeito aos Direitos Humanos, seja diretamente, seja por omissão, como na condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Sétimo Garibaldi[8].

Mais do que isso, muito embora seja extenso rol de Direitos Humanos das comunidades indígenas diuturnamente violado, como o direito à terra, à educação e à saúde com qualidade, a atuação da FT Avá Guarani revelou-se imprescindível, naquele momento, por utilizar-se do Direito Penal para garantir, ao menos, o direito à vida.

De fato, quando a existência da Força Tarefa foi revelada, em junho de 2016, os atos de violência, que se repetiam quase que mensalmente desde meados de 2015, cessaram!

Porém, passados cerca de 5 anos da criação da FT Avá Guarani e depois de 11 denúncias oferecidas, nenhum dos mais de 20 denunciados foi condenado. Também não chegou ao fim nenhum dos processos anteriores. Com isso, a sensação de impunidade começa a voltar e a violência já está de novo presente na vida dos Guarani[9].

Referências

[1]Vídeo: Massacre de Caarapó o assassinato de Clodiodi Guarani Kaiowá.mp4 (https://youtu.be/slfJXEjQRA4)

[2]Vídeo: Polícia e MP tentam evitar confronto entre fazendeiros e índios em Coronel Sapucaia MS.mp4 (http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/videos/t/todos-os-videos/v/policia-e-mp-tentam-evitar-confronto-entre-fazendeiros-e-indios-em-coronel-sapucaia-ms/4277092/)

[3]Vídeo: Indígena é morto a tiros durante confronto com fazendeiros.mp4

[4]Vídeo: http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2015/09/exercito-bloqueia-acesso-fazendas-ocupadas-por-indigenas-em-ms.html)

[5] Fotos e vídeo anexos.

[6]“60. A Relatora Especial está especialmente preocupada com o nível de violência racial contra os povos indígenas nos estados do Mato Grosso do Sul (…). 62. A Relatora Especial condena tais ataques e conclama o Governo a pôr um fim a essas violações de direitos humanos, bem como investigar e processar seus mandantes e autores diante da Justiça. Ela cumprimenta o Procurador Geral e o Ministério Público Federal por conduzir a investigação sobre o ataque violento de 14 de junho de 2016 no Mato Grosso do Sul, e por denunciar 12 pessoas envolvidas no uso de milícias contra povos indígenas. (…) ” (http://unsr.vtaulicorpuz.org/site/index.php/es/documentos/country-reports/154-report-brazil-2016).

[7]Cf.: http://www.mpf.mp.br/ms/sala-de-imprensa/noticias-ms/parlamentares-europeus-constatam-violacoes-de-direitos-humanos-dos-guarani-em-ms

[8]Cf.: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/09/c5be67d768a9e6f774020ea22d4062d4.pdf

[9]Cf: https://www.brasildefato.com.br/2020/01/10/segurancas-privados-realizam-ataque-de-16-horas-e-atiram-contra-indigenas-no-ms/

https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2020/01/03/tres-pessoas-ficam-feridas-em-conflito-entre-indios-e-segurancas-de-fazendeiros-em-ms.ghtml

RICARDO PAEL ARDENGHI – Procurador da República em Cuiabá. Integrante da Força Tarefa Avá Guarani

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