Impactos de Belo Monte sobre o direito à moradia adequada e à saúde

Análise à luz da atuação do Ministério Público Federal sobre a ‘área da lagoa’ em Altamira/PA

No município paraense de Altamira, grande parte dos casos de Covid-19 registrados até julho concentrou-se em uma região peculiar. Trata-se da “área da lagoa”, situada no bairro Jardim Independente I. Suas águas, antes correntes e sazonais, formam hoje um gigantesco esgoto a céu aberto, cuja consolidação se acelerou desde a controversa instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte[1]. Antes ocupada por cerca de 40 moradores, que faziam uso da lagoa para banho e pesca, a partir de 2009 a área foi sendo aterrada e povoada por moradias estilo palafita, formando uma espécie de vila suspensa, em um processo de intensa e desordenada ocupação, que chegou a abrigar mais de 500 núcleos familiares.

Além de ser o município mais extenso do Brasil, com uma área aproximada de 160 mil quilômetros quadrados (superior, por exemplo, a países como Grécia e Coreia do Norte), Altamira é também epicentro de contínuas e notórias violações de direitos. Podem ser mencionados o massacre ocorrido no Centro de Recuperação Regional em 29 de julho de 2019, que resultou na morte de 62 pessoas sob custódia estatal[2], e o “Dia do Fogo”, em 10 de agosto de 2019, quando uma ação criminosa resultou na queimada de milhares de hectares de florestas públicas, com o objetivo declarado de “chamar a atenção das autoridades” para a necessidade de regularizar posses em áreas ilicitamente ocupadas e objeto de grilagem[3].

O Ministério Público Federal (MPF) acompanha a luta por direitos empreendida pelos moradores da “área da lagoa”, em um longo processo de embate com o poder público e a empresa Norte Energia S.A., concessionária da hidrelétrica[4]. A atribuição institucional se justifica à luz das múltiplas implicações do licenciamento ambiental da Usina de Belo Monte, conduzido pelo Ibama, sobre o contexto social da região de Altamira[5]. Uma importante premissa da atuação do MPF nesse caso é a construção de estratégias de atuação conjuntas com os moradores, exigindo a garantia quanto à participação social e a transparência dos dados relativos à sua condição.

A conformação do bairro Jardim Independente I foi marcada por relações de desigualdade social e segregação territorial, em um contexto de risco aos moradores, incluindo grande número de crianças, pessoas com deficiência e idosos. As palafitas, sem acesso à energia elétrica e amontoadas sobre a antiga lagoa (que se tornou destino de rejeitos domésticos sem drenagem), forjaram uma espécie de “não-lugar”, em condições desumanas de sobrevivência e com relatos de afogamento e mortes de crianças por doenças relacionadas à ausência de saneamento no local.

Grande parte dos domicílios altamirenses se vale de fossas sépticas com prevalência de “fossas negras”, sem revestimentos externos das escavações, o que agrava o risco de contaminação dos terrenos e dos cursos d´água. Soma-se a isso um processo desordenado de perfuração de poços para captação de água do lençol freático e abertura de fossas rudimentares para despejar o esgoto produzido, muitas vezes diretamente nas ruas da cidade.

O barramento do rio Xingu reduziu a capacidade de autodepuração do rio e potencializou a acumulação de esgoto nas ramificações fluviais. Por tal razão foi prevista, dentre as condicionantes ambientais do licenciamento de Belo Monte, a plena operação dos sistemas de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário em todo perímetro urbano altamirense, sob encargo da Norte Energia S.A. Não foi o que ocorreu, motivando o vigésimo terceiro processo judicial movido pelo MPF diante do descumprimento das condicionantes à instalação da Usina.

Após a realização de uma audiência pública em outubro de 2016, o MPF requisitou pareceres técnicos sobre as condições ambientais da área da lagoa ao Ibama e à Agência Nacional de Águas. Ainda assim, a relação entre a instalação da Usina e os impactos sobre as condições de vida no bairro somente foi afirmada no início de 2018.

A partir de então, seguiu-se uma série de tratativas, reuniões, expedição de recomendações e articulação com ativistas do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e da Associação dos Moradores do Bairro Jardim Independente I (AMBAJI), que resultou na assinatura de um termo de compromisso, em outubro de 2018, entre o município de Altamira e a empresa Norte Energia S.A. Referido acordo previu, em síntese, a realocação da população residente sobre a lagoa, a desinfecção e a revitalização da área.

No período de execução do termo de compromisso, foram relatados problemas relacionados ao cadastro de moradores, exigências rígidas quanto à documentação a ser apresentada e ausência de clareza quanto à metodologia na vistoria dos imóveis, para fins de avaliação da compensação devida. Segundo o acordo, a empresa deveria oportunizar a cada família o recebimento de uma casa em condições adequadas de moradia. Porém, impelidos pela urgência, muitos moradores optaram pela indenização em dinheiro, em valor aquém do necessário para aquisição de um imóvel. Também foi observado o descumprimento do cronograma previsto no termo de compromisso, o que motivou a convocação, pelo MPF, de uma nova audiência pública em julho de 2019, e o ajuizamento de uma ação civil pública pelo município de Altamira em face da concessionária Norte Energia S.A.

Embora cumprido em parte, o termo de compromisso segue pendente quanto aos imóveis cadastrados na área do entorno da lagoa, cuja ligação à rede de saneamento é inviável. Também está pendente o tratamento hídrico e a revitalização da lagoa. Sob demanda dos moradores, e com auxílio técnico, o MPF recomendou a construção de um ecomuseu na área, destinado à valorização da memória, dos modos de vida e do patrimônio cultural da região.

Não é casual, portanto, o vínculo que aqui se estabelece entre moradia adequada, na sua dimensão de acesso a saneamento básico (fornecimento de água potável e esgotamento sanitário), e saúde pública[6]. Tal relação é expressa no art. 200, IV, da Constituição brasileira, que atribui ao Sistema Único de Saúde a participação na formulação da política e na execução das ações de saneamento básico.

Porém, embora consagrado em normas internacionais, como a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais de 1966, e também afirmado constitucionalmente, o direito à moradia adequada encontra inumeráveis empecilhos à sua efetivação e concretização, especialmente em países marcados pela desigualdade racial, étnica, social e de gênero, como o Brasil.

Além das dificuldades inerentes ao distanciamento físico durante a pandemia, as famílias residentes na “área da lagoa” sequer possuem condições sanitárias para realizar a assepsia necessária para evitar o contágio. Tal constatação, inclusive, motivou a expedição de uma recomendação dirigida ao município de Altamira, que já havia sido acionado judicialmente por descumprimento às diretrizes científicas e técnicas para o controle da pandemia[7].

A concentração de casos de Covid-19 na “área da lagoa”, evidencia que a população efetivamente se encontra em situação de grande vulnerabilidade, sobretudo pelas notórias, indiscutíveis e gravíssimas deficiências de infraestrutura local.

Nesse cenário, é possível concluir que a efetivação do direito à moradia adequada tem sido marcado por contínuos enfrentamentos e resistências. Os avanços obtidos nessa área, como em tantas outras, foram resultado de lutas coletivas empreendidas pelos indivíduos diretamente impactados, razão pela qual a atuação do MPF deve ser tecnicamente qualificada e democraticamente legitimada pelo diálogo aberto, leal e transparente com os titulares dos direitos em questão.

Referências

[1]A Veneza de Belo Monte. Artigo de Eliane Brum. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/14/politica/1526322899_121198.html

[2]http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/mpf-investiga-situacao-de-presos-federais-e-indigenas-na-rebeliao-de-altamira-pa/

[3]http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/mpf-apura-aumento-no-desmatamento-e-nas-queimadas-na-floresta-amazonica-em-investigacoes-em-santarem-itaituba-altamira-e-belem

[4]https://bit.ly/independentei

[5]http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/591117-belo-monte-dez-anos-depois-e-a-continua-precarizacao-dos-modos-de-vida-entrevista-especial-com-sadi-machado

[6]Não faltam comprovações empíricas da importância capital do saneamento básico para os direitos fundamentais, para a qualidade de vida da população e para o meio ambiente. Não por outra razão, o acesso ao saneamento básico é variável importantíssima no cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos países. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cada dólar investido em sanemanto básico significa uma economia de aproximadamente 4,3 dólares em saúde curativa e aumento de produtividade.” SARMENTO, Daniel. Saneamento básico, federalismo cooperativo, direitos fundamentais e participação: inconstitucionalidades na privatização da CEDAE. In: Direitos, democracia e república. Escritos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 425-447.

[7]http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/tribunal-atende-pedido-do-mpf-e-manda-paralisar-comercio-nao-essencial-de-altamira-pa

* Artigo publicado originalmente no site Jota

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