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Nota Técnica PL 014/2016 (10 medidas Contra a Corrupção)

NOTA TÉCNICA PRESI/ANPR/JR Nº 014/2016

Proposição: PL nº 4850/2016

Ementa: Estabelece medidas contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento ilícito de agentes públicos.

Dispositivos: Artigos 14 e 15.

Senhores Deputados,

A Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR apresenta Nota Técnica quanto ao Projeto de Lei 4.850/2016, que formaliza a proposta denominada “10 medidas Contra a Corrupção”.

Em seus artigos 14 e 15, o PL 4.850/2016 consubstancia a “Medida 6: Ajustes na Prescrição Penal contra a Impunidade e a Corrupção”, alterando o Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, – no que tange aos prazos prescricionais penais.

É certo e notório que um dos grandes obstáculos à persecução penal, contribuindo decisivamente para a sensação de impunidade, é a desarrazoada aplicação da prescrição penal, há muito criticada pelos estudiosos. Neste contexto, as medidas ora propostas reúnem diversas sugestões que há muito se debate, inclusive já constantes do projeto de Novo Código Penal (PLS 236/2012) e de Novo Código de Processo Penal (PL 8.045/2010), visando à melhoria do instituto da prescrição.

Daí a importância dos temas ora trazidos a debate, analisados abaixo.

  1. Prescrição e Estado de Direito

A prescrição é a perda do direito de punir do Estado, em razão do decurso de tempo, devido ao seu não exercício dentro do prazo previamente fixado. A prescrição, em um Estado de Direito, constitui a regra, não podendo ser admitida a eternização do direito de punir. A imprescritibilidade, por sua vez, é exceção. A Constituição Federal traz, quanto à prescrição, apenas as exceções, determinando como imprescritíveis o racismo e as ações de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (incisos XLII e XLIV do art. 5º).

É, portanto, instituto que visa a conferir segurança jurídica ao cidadão, impondo limites ao poder persecutório-penal estatal. A garantia do cidadão, portanto, está na clara delimitação das regras, conferindo previsibilidade para a persecução penal.

Hoje as regras referentes à prescrição penal estão disciplinadas nos artigos 109 a 118 do Código Penal, variando esta conforme a quantidade de pena cominada abstratamente ao delito, ou cominada concretamente, a partir do trânsito em julgado. Uma vez transitada em julgado a sentença condenatória, cominando a pena em concreto, será esta utilizada para verificar a ocorrência da prescrição tanto dos atos anteriores (prescrição retroativa) quanto dos atos posteriores (prescrição superveniente)

Contudo, a existência de limites definidos na legislação não pode ser confundida com o incentivo à prescrição, permitindo a prescrição desmesurada de diversos crimes que o Estado é obrigado a reprimir e punir. Situação que é, em grande medida, a que predomina hoje, já que, por uma série de fatores, as normas referentes à prescrição acabam criando diversas situações de impunidade injustificada.

É neste contexto que se inserem as propostas ora trazidas pelo MPF, e que passamos a analisar.

     2. Extinção da prescrição retroativa e o aumento de prazo na prescrição executória

O artigo 14 do PL 4.850/2016 altera o parágrafo 1º do art. 110 do Código Penal, extinguindo a retroatividade da prescrição penal em concreto. Isto é: trata-se de evitar que a pena determinada posteriormente possa afetar e tornar inúteis todos os atos processuais anteriormente praticados, não atingidos oportunamente pela prescrição abstratamente determinada.

De fato, nada há de mais incompatível com o poder-dever estatal de reprimir a criminalidade que a inutilização de atos processuais já perfeitos e acabados, em razão da superveniência da pena em concreto, a partir do trânsito em julgado. Tornam-se efetivamente inúteis todos os recursos públicos – recursos materiais e humanos do Poder Judiciário, do Ministério Público, das polícias – despendidos na persecução penal, em razão da fixação posterior da pena em concreto.

A prática, incoerente por si só, é criação exclusiva de nosso país, não sendo encontrada em qualquer outro ordenamento jurídico. Daí porque o Projeto de Novo Código Penal (PLS 236/2012) já previa modificação semelhante, consubstanciada no caput do art. 110 do CP1 , justamente por ser fator dos que mais contribui para a impunidade. A individualização da pena, garantida constitucionalmente, em nada se confunde com os prazos que possui o Estado para puni-los, não havendo qualquer exigência constitucional quanto à prescrição pela pena em concreto e retroativa. Não existe um direito à prescrição retroativa em nosso ordenamento jurídico.

Neste mesmo sentido é o que entende o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal2 .

O mesmo art. 14 do PL 4.850/2016 altera também o caput do art. 110, aumentando, de forma geral, o prazo da prescrição executória em um terço.

A Consultoria Legislativa do Senado, conquanto não apoie a medida, não entende por sua inconstitucionalidade, por entender tratar-se de opção política do legislador3 .

Trata-se, aqui, da incorporação de previsão constante de diversos ordenamentos jurídicos mundo afora, tais como os da Costa Rica, México, El Salvador e Uruguai4 . Observa-se um padrão mundial de ter a prescrição da pretensão executória com prazos maiores que a prescrição da pretensão punitiva, razão pela qual se pretende incorporar tal alteração no ordenamento jurídico pátrio.

     3. Termo inicial da prescrição após sentença condenatória irrecorrível

Também no art. 14 do PL 4.850/2016 vem prevista a proposta de alteração do art. 112, inciso I, do Código Penal, para que a prescrição da pretensão executória, contada a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória, inicie-se simultaneamente para a acusação e para a defesa.

Com efeito, esta proposta busca combater uma das maiores incogruências de nosso sistema. Sim, pois, atualmente, a prescrição para a acusação começa a correr mesmo quando ainda não se pode executar a pena, em razão de pendência de recurso da defesa. Isto é: a defesa, em interesse próprio e valendo-se de seu amplo direito recursal, apresenta recursos extraordinários, que impedem o trânsito em julgado e, em alguns casos, a execução da pena. E isso mesmo com a decisão do STF no indeferimento das liminares nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44, já que poderia haver, em tese, medidas como habeas corpus ou cautelares que sustem a execução penal por algum motivo especificado no caso concreto.

Ao mesmo tempo, contudo, a prescrição para a acusação já está correndo, a partir do momento em que esta não apresenta mais recursos. O resultado de tal anomalia processual não poderia ser outro: a defesa muitas vezes se vale de suas prerrogativas exclusivamente para fazer correr a prescrição em seu benefício, o que pode vir a ser verificado apenas após muitos anos, com a apreciação dos recursos pelos tribunais.

A medida, assim, nada mais faz que conferir alguma coesão e racionalidade ao inciso em comento. Se a prescrição se presta a garantir a segurança jurídica ao cidadão em face da inércia do Estado, neste caso é a própria atuação do indivíduo que posterga o início da execução da pena.

No mesmo sentido é a opinião do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal 5 e da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados6 .

    4. Causas impeditivas da prescrição

As propostas trazem também modificações nas causas impeditivas da prescrição, previstas no art. 116 do Código Penal. De início, acrescenta-se o inciso III, de forma a que não corra a prescrição “desde a interposição dos recursos especial e/ou extraordinário, até a conclusão do julgamento”.

Trata-se, conforme bem expõe Monique Cheker, de “evitar que a interposição de recursos extraordinários em sentido amplo (recursos especial e extraordinário em sentido estrito), que não possibilitam mais a ampla discussão da matéria fática, e contra título judicial já maduro, acabem ensejando a prescrição pelo decurso do tempo, sem que haja inércia da parte”7 .

A medida foi objeto de críticas, sendo acusada de premiar a inércia estatal – isto é, a demora no julgamento dos recursos –, prejudicando o direito à ampla defesa do acusado8 . Contudo, a proposta já vem sendo debatida há anos, e está em consonância com o PL 8.045/2010, que traz o projeto de Novo Código de Processo Penal (art. 505, §3º). Ora, não se trata de limitar o direito de defesa do réu, e sim de garantir coerência ao sistema processual penal, evitando que todo o esforço estatal despendido, do qual tenha resultado a condenação do réu, seja nulificado pelo exercício da ampla defesa. Há, ainda, previsão semelhante no Código Penal Colombiano9 .

No que tange ao acréscimo do “réu foragido ou evadido” como hipóteses impeditivas da prescrição (alteração do art. 116, parágrafo único, do Código Penal), também foram tecidas críticas, que também não devem prevalecer. Muito embora seja sim dever do Estado “recuperar prontamente o réu preso, utilizando-se para isso dos instrumentos de segurança pública”, conforme afirmado pela Consultoria Legislativa do Senado 10 , trata-se claramente de conduta ilícita do réu, que em absoluto pode permanecer sendo usada para lhe beneficiar a ponto de extinguir sua punibilidade. Trata-se de garantir a coerência e racionalidade do sistema processual, e de utilizar, com com eficiência, os recursos públicos despendidos na persecução penal. Pela fuga, o réu já se beneficia da falta de cumprimento da pena que lhe é imposta, não pode também ser premiado com a extinção da punibilidade.

Ademais, mesmo quando o Estado atua com todo o zelo e recursos possíveis, ainda assim pode não conseguir evitar a fuga, ou recuperar o preso. Assim, conforme bem coloca Monique Cheker: “Cabe ao Estado desincentivar a fuga, não deixar que o criminoso tenha benefícios pela sua própria torpeza, sendo que a proposta de paralisar o fluxo prescricional parece se adequar aos mecanismos internacionais”11 .

Por fim, convém destacar que o artigo 366 do Código de Processo Penal foi há muito alterado pela Lei 9271/96, para, corretamente, prever que "Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.". Vale dizer, há duas décadas, a legislação brasileira prevê que não correrá processo contra réu que seja citado por edital e não compareça pessoalmente em juízo ou por meio de advogado.

Ademais, há dever do réu de comunicar mudança de endereço (artigo 367 do Código de Processo Penal), indicando que o réu ciente de processo criminal em seu desfavor e que não comparece, nem mantém endereço atualizado, deve arcar com prazo prescricional.

     5. Causas interruptivas da prescrição

O art. 117 do Código Penal, que traz as causas interruptivas da prescrição, também sofre alterações pelo PL 4.850/2016.

Modifica-se a primeira hipótese de interrupção (inciso I), que passa a ser o oferecimento da denúncia ou da queixa, e não mais o seu recebimento pelo juiz. Ora, se a prescrição se presta a dissuadir a inércia estatal, certamente, tendo havido o oferecimento da denúncia, não se pode dizer que o Estado deixou de agir.

Essa posição enfrenta alguma resistência, pois há quem diga que o MP é parte, de forma que não representaria o Estado12. Mas é evidente que é também a sua inércia que leva à prescrição, uma vez que é quem detém a legitimidade e a titularidade para a ação penal, acionando o Poder Judiciário.

Trata-se, evidentemente, de uma escolha política, pois a Constituição não orienta pela adoção de um conceito mais ou menos restritivo para a prescrição. Contudo, em diversos países, também a atuação do MP é capaz de fazer suspender ou interromper o curso prescricional. Dentre eles: França, Alemanha, México, Peru, Paraguai. Destaque-se que na França até mesmo atos de investigação são capazes de interromper a prescrição13 .

No inciso IV do mesmo artigo, o PL 4.850/2016 acrescenta como hipóteses de interrupção o proferimento de decisão monocrática ou acórdão que julgar recurso interposto pela parte, à semelhança do já proposto no projeto de Novo Código Penal (PL 236/2012). Isso porque mesmo a decisão monocrática já representa atuação do Estado-juiz, quebrando a inércia no tempo.

A medida foi criticada pela Consultoria Legislativa do Senado, segundo a qual: “não há sentido na interrupção da prescrição pelo proferimento de ‘qualquer decisão monocrática’. Essa decisão não possui a mesma qualificação de mérito das hipóteses narradas acima; e sequer exige a análise da demanda principal da ação penal, como é o caso da decisão sobre pedido feito por terceiro acerca da restituição de coisas apreendidas”14 .

Contudo, essa afirmação não é correta, pois a sugestão proposta diz claramente que a prescrição se interrompe com a decisão monocrática ou acórdão que julgar recurso interposto pela parte. Limita-se a hipótese de prescrição à decisão monocrática que julgue recurso, não havendo que se falar em interrupção com qualquer decisão, como no exemplo dado pela Consultoria do Senado.

Por fim, o PL 4.850/2016 acrescenta o inciso VII, prevendo a interrupção da prescrição “pelo oferecimento de agravo pedindo prioridade no julgamento do feito, pela parte autora, contra a demora do julgamento de recursos quando o caso chegou à instância recursal há mais de 540 dias, podendo o agravo ser renovado após decorrido igual período”

No âmbito da Consultoria Legislativa do Senado, a posição foi no sentido de descabimento da medida, alegando-se que o excesso de recursos deve ser combatido com a alteração do processo penal em si15, com o que discordamos. Conforme bem expõe Monique Cheker, a medida “tem por propósito harmonizar o tratamento da prescrição com a necessidade de inércia da parte para sua incidência. O instituto da prescrição objetiva conferir segurança jurídica ao réu quando o autor não adota as providências que lhe são cabíveis (dormientibus non sucurrit jus). Sancionar o autor com a extinção de seu direito quando age de modo diligente, como ocorre hoje, é um contrassenso”16 .

     6. Crime praticado por particular contra a administração pública estrangeira

A última inovação proposta, no que tange à prescrição, diz respeito à alteração do Código Penal, aumentando o prazo prescricional para o crime de corrupção ativa em transação comercial internacional.

O acréscimo do §2º ao art. 337-B do Código Penal atende ao disposto no art. 6º da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Decreto 3678/00) que exige que se permita “um período de tempo adequado para a investigação e abertura do processo sobre o delito”.

Ora, o simples fato do crime ser cometido por funcionários públicos já justifica o aumento no prazo prescricional, para mais. A medida, a par da previsão na mencionada Convenção, já foi adotada em outros ordenamentos, a exemplo do Peru e da Colômbia, justamente por considerar as dificuldades procedimentais em crimes desta natureza. Bem por isso, houve apoio à medida pela Consultoria Legislativa do Senado Federal17 e da Câmara dos Deputados.

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As medidas propostas abordam o tema da prescrição, não por ser a única forma de resolver a impunidade do sistema penal brasileiro – em especial no que tange aos crimes de corrupção – mas sim para evitar o desperdício dos esforços e dos recursos despendidos ao longo de um processo penal. Afinal, se a prescrição é uma forma de proteger o réu da eternização do processo, em razão da inércia estatal, não há porque se falar em prescrição se o Estado não está inerte.

São nesse sentido as medidas propostas, razão pela qual pugnase pela aprovação dos artigos 14 e 15 do projeto em comento.

Sendo o que havia para o momento, permanecemos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam necessários. Recebam Vossas Excelências nossos protestos de estima e consideração.

Brasília, 05 de outubro de 2016.

Associação Nacional dos Procuradores da República

 

Confira a nota na íntegra

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