O regime da indisponibilidade de bens no Projeto de Lei nº 10.887/2018: principais pontos

No Brasil, a necessidade é de reforço das medidas cautelares patrimoniais, pois elas não conseguem alcançar bens e valores suficientes para cobrir as penas impostas ao fim da ação de improbidade administrativa.

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1. Introdução

No Brasil, o combate à improbidade administrativa decorre de mandamento constitucional explícito. Isso porque a Constituição da República colocou a moralidade como princípio norteador da Administração Pública e, para lhe dar efetividade, previu que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (art. 37, §4º, da CF).

Como se nota, o dispositivo declara a necessidade de punição, indica algumas penalidades a serem impostas, declara que da prática de um ato de improbidade decorre a decretação de indisponibilidade de bens e esclarece que a repressão à improbidade é uma esfera sancionatória independente, ao deixar consignado que ela se desenvolve “sem prejuízo da ação penal cabível”.

Não havia, porém, uma definição concreta do que é improbidade administrativa até a edição da Lei nº 8.429/1992, que prevê quais são os atos ímprobos nos artigos 9º a 11, tipificando casos de má gestão pública, não apenas de corrupção stricto sensu. Como explica Fábio Medina Osório, “seu objeto é realmente mais amplo, incluindo a tutela repressiva de desonestidades que talvez não se encaixem na categoria sociológica da corrupção, sem falar nos ilícitos culposos derivados de violência à eficiência administrativa”1.

Referida lei trata de questões de direito material, como já visto, e ainda de direito processual, trazendo regras específicas sobre a ação a ser ajuizada quando verificada a prática de um dos atos nela tipificados.
Após quase trinta anos de vigência, a Lei de Improbidade Administrativa está em vias de ser reformada pelo Projeto de Lei nº 10.887/2018, que reduz o âmbito de aplicação da norma e traz diversas alterações processuais. Entre elas, há a inclusão de vários dispositivos sobre a indisponibilidade de bens, todos no sentido de limitar o uso dessa cautelar, sob o argumento de que a sistemática atual é desproporcional e irrazoável, causando graves prejuízos aos réus.

Ocorre que, como se verá ao longo desse trabalho, a prática demonstra justamente o contrário: no Brasil, a necessidade é de reforço das medidas cautelares patrimoniais, pois elas não conseguem alcançar bens e valores suficientes para cobrir as penas impostas ao fim da ação de improbidade administrativa.

2. Indisponibilidade de bens na Lei de Improbidade Administrativa

A Lei n. 8.429/1992 trata do tema apenas em seu art. 7º, abaixo transcrito:


Art. 7° Quando o ato de improbidade causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a indisponibilidade dos bens do indiciado.
Parágrafo único. A indisponibilidade a que se refere o caput deste artigo recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito.

Como se observa, o tratamento legal é breve. Foi o Judiciário, especificamente o Superior Tribunal de Justiça, que fixou as balizas para a utilização da referida cautelar ao julgar inúmeros casos sobre o tema. Em geral, a Corte Superior adotou entendimentos que reforçaram o uso da medida, facilitando sua aplicação, sem descuidar dos direitos dos réus.

Mesmo assim, o que se observa ao longo de décadas de vigência da Lei de Improbidade Administrativa é que sua aplicação enfrenta dois óbices. O primeiro diz respeito às dificuldades relativas à investigação e à configuração dos atos ímprobos. O segundo é relativo à própria efetividade do processo: quando finalmente se obtém um sentença condenatória, a regra é inexistirem bens suficientes para o pagamento das penas pecuniárias.

Demonstrando a enorme dificuldade em se obter um resultado útil na ação de improbidade e a necessidade de reforço às garantias patrimoniais, tem-se publicação do Conselho Nacional de Justiça contendo dados empíricos2:

O ressarcimento dos danos causados, ou seja, de natureza patrimonial e de forma total, foi observado em 4,00% e o de natureza parcial ocorreu em 6,40% dos processos.
Neste ponto, o que se verificou, em termos de identificação da influência de aspectos processuais na permanência de situações de impunidade, foi que não há uma atuação mais precisa e incisiva na fase de execução dos julgados. O ressarcimento dos prejuízos causados não tem recebido a mesma prioridade que o ajuizamento do processo de conhecimento.
Mecanismos como a indisponibilidade adequada de bens (suficientes para o ressarcimento, sem abuso ou de forma a impedir o funcionamento das empresas), a hipoteca judiciária e a execução provisória na parte condenatória, não são adequadamente utilizados.

A despeito de quase 90% das ações de improbidade não resultarem sequer no ressarcimento parcial dos danos causados, o PL nº 10.887/2018, ao invés de reformar a legislação para reforçar as garantias patrimoniais, enfraquece a indisponibilidade de bens.

Vários de seus dispositivos, inclusive, contrariam o que vinha sendo reiteradamente decidido pelo STJ. Pode-se dizer que o PL adotou um posicionamento muito nítido: restritivo à indisponibilidade de bens e, portanto, em prol dos direitos dos réus, sem observar a necessidade de também tutelar o direito difuso a uma administração proba.

Seguem os dispositivos do projeto de lei que tratam do tema (grifos acrescidos):


Art. 16. Na ação por improbidade administrativa poderá ser formulado, em caráter antecedente ou incidente, pedido de indisponibilidade de bens dos réus, a fim de garantir a integral recomposição do erário ou do acréscimo patrimonial resultante de enriquecimento ilícito.
§ 1º (Revogado).
§ 1º-A O pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo poderá ser formulado independentemente da representação de que trata o art. 7º desta Lei.
§ 2º Quando for o caso, o pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo incluirá a investigação, o exame e o bloqueio de bens, contas bancárias e aplicações financeiras mantidas pelo indiciado no exterior, nos termos da lei e dos tratados internacionais.
§ 3º O pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução, após a oitiva do réu em 5 (cinco) dias.
§ 4º A indisponibilidade de bens poderá ser decretada sem a oitiva prévia do réu, sempre que o contraditório prévio puder comprovadamente frustrar a efetividade da medida ou houver outras circunstâncias que recomendem a proteção liminar, não podendo a urgência ser presumida.
§ 5º Se houver mais de um réu na ação, a somatória dos valores declarados indisponíveis não poderá superar o montante indicado na petição inicial como dano ao erário ou como enriquecimento ilícito.
§ 6º O valor da indisponibilidade considerará a estimativa de dano indicada na petição inicial, permitida a sua substituição por caução idônea, por fiança bancária ou por segurogarantia judicial, a requerimento do réu, bem como a sua readequação durante a instrução do processo.
§ 7º A indisponibilidade de bens de terceiro dependerá da demonstração da sua efetiva concorrência para os atos ilícitos apurados ou, quando se tratar de pessoa jurídica, da instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, a ser processado na forma da lei processual.
§ 8º Aplica-se à indisponibilidade de bens regida por esta Lei, no que for cabível, o regime da tutela provisória de urgência da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
§ 9º Da decisão que deferir ou indeferir a medida relativa à indisponibilidade de bens caberá agravo de instrumento, nos termos da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
§ 10. A indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita.
§ 11. A ordem de indisponibilidade de bens deverá priorizar veículos de via terrestre, bens imóveis, bens móveis em geral, semoventes, navios e aeronaves, ações e quotas de sociedades simples e empresárias, pedras e metais preciosos e, apenas na inexistência desses, o bloqueio de contas bancárias, de forma a garantir a subsistência do acusado e a manutenção da atividade empresária ao longo do processo.
§ 12. O juiz, ao apreciar o pedido de indisponibilidade de bens do réu a que se refere o caput deste artigo, observará os efeitos práticos da decisão, vedada a adoção de medida capaz de acarretar prejuízo à prestação de serviços públicos.
§ 13. É vedada a decretação de indisponibilidade da quantia de até 40 (quarenta) salários mínimos depositados em caderneta de poupança, em outras aplicações financeiras ou em conta-corrente.
§ 14. É vedada a decretação de indisponibilidade do bem de família do réu, salvo se comprovado que o imóvel seja fruto de vantagem patrimonial indevida, conforme descrito no art. 9º desta Lei.”(NR) 

2.1. Requisitos para a decretação da indisponibilidade de bens

O art. 7º da LIA não menciona quais são os requisitos para a medida. Contudo, diante da natureza cautelar, ela deve ser concedida quando presentes o fumus boni juris e o periculum in mora. O primeiro depende da verossimilhança das alegações, ou seja, uma probabilidade razoável de que os fatos narrados na inicial tenham ocorrido, configurem atos ímprobos e tenha sido praticados pelos requeridos. O segundo diz respeito ao risco que a demora no trâmite da ação traz para a eficácia do provimento final, especificamente quanto a possível inexistência de patrimônio apto a arcar com o pagamento das penalidades quando do cumprimento da sentença.

Para a indisponibilidade de bens prevista na lei de improbidade administrativa, o STJ decidiu, em regime de recurso repetitivo (REsp nº 1366721/BA), que o periculum in mora é presumido, firmando a tese de que “é possível a decretação da "indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro". Considerou-se que o art. 7º da LIA e o art. 37, §4º já trazem esse requisito implícito em seus dispositivos, mesmo porque o dispositivo constitucional diz que “os atos de improbidade administrativa importarão (…) a indisponibilidade dos bens”.

Porém, o PL nº 10.887/2018 busca afastar a prática consolidada na aplicação da lei e torna mais difícil a aplicação da medida ao exigir a comprovação concreta do periculum in mora no art. 16, §3º (grifos acrescidos):

O pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos, descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução, após a oitiva do réu em 5 (cinco) dias.

A alteração torna a decretação de indisponibilidade administrativa bastante difícil, representando óbice quase que intransponível à constrição de bens e valores para garantir a eficácia da ação. Afinal, se forem interpretadas como necessidade de se demonstrar que o réu irá dilapidar seu patrimônio ou praticar qualquer tipo de ato que obste a execução, configuram verdadeira prova diabólica na quase totalidade dos casos. A não ser que o réu já responda a outras ações e tenha praticado atos do gênero, como o Ministério Público poderia comprovar concretamente que ele irá proceder dessa maneira?

A matéria deve ser tratada de acordo com o que é possível no mundo dos fatos e, obviamente, a dilapidação patrimonial não só é possível como costuma ocorrer, tanto que a taxa de sucesso de ressarcimento nas ações de improbidade é insignificante. Isso demonstra a tendência a ocultação patrimonial e dilapidação de bens desde antes do ajuizamento da ação.

2.2 Alcance da indisponibilidade e bens

O art. 7º da LIA dispõe que a indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito, de maneira que somente as penas de perda de bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio e ressarcimento integral do dano estariam protegidas.

Ocorre que a própria LIA prevê uma terceira espécie de pena pecuniária, a multa civil, aplicável a qualquer um dos tipos de atos ímprobos, até mesmo aos do art. 11, que não envolvem dano ao erário nem enriquecimento ilícito. A diferença da multa para cada espécie de improbidade diz respeito apenas à base de cálculo, que será o valor do acréscimo patrimonial, o valor do dano ou o valor da remuneração percebida pelo agente.

Considerando que o objetivo da indisponibilidade de bens é assegurar futura execução, ela deveria abarcar todas as penas pecuniárias, sejam elas de caráter indenizatório ou punitivo. Assim leciona Rogério Pacheco Alves3:

A multa cominada ao ímprobo está em perfeita harmonia com a medida cautelar de indisponibilidade dos bens, originalmente prevista no art. 37, §4º, da Constituição da República e que visa a assegurar a eficácia do provimento jurisdicional que aplicar sanções pecuniárias.
O não adimplemento voluntário da multa aplicada exigirá a instauração de processo de execução, sendo de conhecimento geral que a inexistência de patrimônio inviabilizará o seu prosseguimento, sujeitando o crédito respectivo ao lapso prescricional comum para a execução de dívida certa da Fazenda Pública em face do particular.
Ante a impossibilidade de conversão da multa civil em sanção de natureza diversa, constata-se a importância das medidas preliminares que visem a identificar e apreender os bens do ímprobo, sempre em proporção necessária à satisfação das sanções pecuniárias passíveis de aplicação, o que é derivação direta do poder geral de cautela. Tal proceder evitará que o ímprobo dissipe seu patrimônio e afastará a inocuidade que muitas vezes assola sanções dessa natureza.

Nesse sentido se consolidou a jurisprudência do E. STJ, última instância responsável pela análise da matéria, já que não envolve controvérsia constitucional:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. INDISPONIBILIDADE DE BENS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que ainda que inexistente prova de enriquecimento ilícito ou lesão ao patrimônio público, faz-se plenamente possível a decretação de indisponibilidade de bens, notadamente pela possibilidade de ser cominada, na sentença condenatória, a pena pecuniária de multa civil como sanção autônoma, cabendo sua imposição, inclusive, em casos de prática de atos de improbidade que impliquem tão somente violação a princípios da Administração Pública. Precedentes: AgInt no REsp 1.500.624/MG, Rel. Min. Sergio Kukina, Primeira Turma, Dje 5/6/2018; AgRg no REsp 1.311.013/RO, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 31/12/2012; AgRg no REsp 1.299.936/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 23/4/2013. 2. Na hipótese dos autos, o Tribunal de origem ao decidir pelo "indeferimento do pedido de indisponibilização de bens dos agravantes, pois não haveria dano ao erário, embora cumpra admitir que sobre o concurso em tela pesam fortes suspeitas", divergiu do entendimento sedimentado no âmbito do STJ. 3. Agravo interno não provido. (AgInt no REsp 1748560/SC, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/03/2020, DJe 13/03/2020)”

Ocorre que em junho de 2020 o Superior Tribunal de Justiça afetou o REsp nº 1862792 como representativo de controvérsia e delimitou a tese a ser debatida: “definir se é possível – ou não – a inclusão do valor de eventual multa civil na medida de indisponibilidade de bens decretada na ação de improbidade administrativa, inclusive naquelas demandas ajuizadas com esteio na alegada prática de conduta prevista no art. 11 da Lei 8.429/1992, tipificador da ofensa aos princípios nucleares administrativos”.

O voto do Ministro Relator reconhece a existência de julgados das duas Turmas de Direito Público da Corte Superior no sentido de que a indisponibilidade deve incidir sobre os bens necessários ao integral ressarcimento do dano, levando-se em conta também o potencial valor da multa civil. Porém, aduz que, como não há decisão da Primeira Seção nem da Corte Especial e o TJSP, TJPR e TRF1 possuem decisões em sentido contrário (as quais não são citadas especificamente no voto), “a questão tratada nos autos revela caráter representativo de dissídio de natureza repetitiva”.

O PL nº 10.887/2018, se aprovado, encerra essa discussão dispondo, em seu art. 16, §10, que “a indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita”. Ou seja, retira qualquer garantia para o pagamento da multa civil que, inclusive, pode alcançar valores muito superiores aos do dano.

Ressalte-se, porém, que o bloqueio de bens e valores para garantir o pagamento da multa civil pode ser obtida com base no Código de Processo Civil e no poder geral de cautela, já que o processo deve ser dotado de instrumentos aptos a garantir sua efetividade. Se a lei prevê a multa civil como pena, deve haver instrumento processual adequado para assegurar seu cumprimento futuro. 

2.3. Ordem de preferência dos bens a serem objeto da indisponibilidade

O parágrafo 11º do art. 16 do Projeto indica quais bens devem ser prioritariamente objeto da cautelar, determinando que o bloqueio de contas bancárias é a ultima medida a ser tomada. Qualquer outra espécie de bem deve ser objeto da constrição antes dos valores depositados em instituições financeiras. Nesse ponto, o legislador presume que o dinheiro existente nas contas bancárias é sempre essencial à subsistência do réu ou à manutenção das atividades empresariais da pessoa jurídica requerida e, por isso, não deve ficar bloqueado.

Na atual redação da lei de improbidade, não há tratamento sobre a matéria, mas o Código de Processo Civil – cujas disposições se aplicam subsidiariamente à ação de improbidade – traz uma ordem de preferência para a penhora, estabelecendo ser “prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto”.

A lógica é que o dinheiro é o bem da vida buscado pela medida cautelar e, por isso, deve ser indisponibilizado preferencialmente. Afinal, todos os outros bens (veículos, imóveis, gado, etc.) ainda precisarão ser revertidos em dinheiro para pagamento das penas pecuniárias. Além disso, a guarda do dinheiro é muito mais fácil e ele não se deteriora com o tempo. Ao contrário, basta ser depositado em instituição financeira para que passe a ser corrigido mensalmente. As outras espécies de bens mencionadas no Projeto se deterioram bastante com o tempo e com o uso – veículos, aeronaves, lanchas – e/ou apresentam baixa liquidez, como os imóveis.

Além disso, a conversão no curso do processo de bens móveis, imóveis e semoventes em dinheiro não é vantajosa, pois, além de demandar dispêndio considerável de recursos humanos e materiais e ser objeto de constantes impugnações pelos réus, resulta quase sempre em um valor de venda abaixo do valor de mercado, sendo exatamente essa a atratividade dos leilões para o público em geral. Portanto, se no início se acredita ter garantido integralmente a ação com aqueles bens, o que ocorre é que, ao final do leilão, a garantia se mostra insuficiente.

Logo, o mais acertado é manter a preferência do bloqueio de dinheiro e analisar casuisticamente se os valores bloqueados são necessários à subsistência do réu e à manutenção da atividade empresarial. Cabe aos requeridos demonstrar que o montante em conta era seu salário mensal ou que a empresa precisa da quantia para fazer frente a compromissos trabalhistas, tributários, etc., por exemplo. Tais provas são facilmente obtidas pelos interessados, que tem acesso aos seus próprios documentos contábeis e financeiros.

3. Conclusão

O presente artigo abordou os pontos que tendem a ter um impacto negativo imediato sobre o resultado útil do processo, sem afastar a possibilidade de que outros dispositivos legais tenham um alcance ainda mais deletério que os aqui analisados.

Primeiramente, a exigência de demonstração de periculum in mora concreto representa um retrocesso e certamente tornará quase impossível a obtenção da cautelar por parte do Ministério Público, que, para além de provar a prática de atos ímprobos, atendendo ao fumus boni juris, deverá, em um exercício de futurologia, indicar quais atos concretos indicam que o réu ocultará bens ou dilapidará seu patrimônio.

Em segundo lugar, o Projeto impede o uso da cautelar para garantir o pagamento da multa civil, como se fosse suficiente obter o ressarcimento do dano ao erário. Na verdade, o ressarcimento é o mínimo a se buscar na ação, por representar mera indenização pelos prejuízos causados. O caráter efetivamente sancionatório recai sobre a multa civil, que alcança até o triplo do montante do dano. Sendo assim, a maior parte da condenação pecuniária ficará a descoberto com a alteração legislativa.

Por fim, o PL subverte totalmente a lógica das cautelares patrimoniais ao prever que a preferência na constrição é de veículos, bem imóveis, entre outros, colocando em último lugar o bloqueio das contas bancárias, partindo da falsa premissa de que todo o dinheiro existente em conta é utilizado para a subsistência do réu e manutenção da atividade empresária.

Enquanto exige do Ministério Público a prova do periculum in mora, dispensa os réus de demonstrarem que determinada quantia disponível nas instituições financeiras é essencial para sua sobrevivência e/ou para a manutenção das atividades empresariais, dando-lhes o direito de oferecer como garantia bens que se deterioram facilmente com o tempo e/ou cuja venda é difícil, demora e tem resultados abaixo do valor de mercado.

Em suma, ao invés de reforçar as medidas de constrição patrimonial - o que poderia ser feito paralelamente a exigências mais claras quanto à razoabilidade do valor indicado pelo autor da ação e quanto às hipóteses de desbloqueio de bens -, o Projeto de Lei nº 10.887/2018, ao enfraquecer a principal medida cautelar prevista na LIA, torna ainda mais difícil a obtenção de resultado útil do processo.

* Catarina Sales Mendes de Carvalho é procuradora da República

Referencias

1 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa - Ed. 2020, Thomson Reuters Brasil, Segunda Parte, Capítulo I. A Lei Geral de Improbidade Administrativa (LGIA): Natureza e Alcance. Page RB-6.3. https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/101686518/v5/page/RB-6.3.
2 Lei de Improbidade Administrativa – Obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. 1ª Edição da Série Justiça Pesquisa. Ano 2015, p. 69.
3 ALVES, R. P. Liv Dig Improbidade Administrativa, 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. E-book.

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