Aspectos penais da nova Lei do Mercado de Câmbio

Lei 14.286/2021 criou dispositivos legais que complementam delitos contra o sistema financeiro nacional

A Lei 14.286, publicada em 30 de dezembro de 2021, promoveu uma ampla reconfiguração no mercado de câmbio brasileiro. Além de inúmeras inovações de índole comercial e tributária, o texto conferiu uma nova regulamentação de dispositivos legais que complementam alguns tipos de delitos contra o sistema financeiro nacional, com destaque para a evasão de divisas (artigo 22 da Lei 7.492/1986) e a operação de instituição financeira sem autorização legal (artigo 16 da Lei 7.492/1986).

Tendo em vista que a criminalidade financeira se encontra intimamente ligada à ideia de acessoriedade administrativa[1], esse novo cenário cambial produz relevantes efeitos penais que dizem respeito, em uma primeira abordagem, à eventual ocorrência da abolitio criminis, à modificação da tipicidade objetiva de delitos e da incidência imediata, ou não, dos novos e benignos preceitos legais em relação aos processos criminais em andamento.

Para desenvolver reflexões preliminares acerca dos aspectos penais da Lei 14.286/2021, adotarei o seguinte roteiro: discutirei a eventual ocorrência de abolitio criminis no crime de evasão de divisas ante a alteração dos valores para a dispensa de declaração do ingresso e da saída do país de moeda nacional e estrangeira ou seu equivalente; comentarei como a tipicidade objetiva do delito do artigo 16 da Lei 7.492/1986 foi atingida pelas inovações implementadas pela nova lei de mercado de câmbio, para, depois, tratar da possível incidência imediata de normas penais benéficas a despeito da imposição, pelo legislador, de uma vacatio legis; ao final, apontarei conclusões sintetizadoras.

1) Evasão de divisas e abolitio criminis

O recente artigo 14 da Lei 14.286/2021 determina que o “ingresso no país e a saída do país de moeda nacional e estrangeira devem ser realizados exclusivamente por meio de instituição autorizada a operar no mercado de câmbio, à qual caberá a identificação do cliente e do destinatário ou do remetente”, enquanto seu §1º esclarece que essa regulamentação não se aplica ao porte, em espécie, de valores até US$ 10 mil ou seu equivalente em outras moedas.

Esse dispositivo revogou expressamente[2] o artigo 65 da Lei 9.069/1995, cujo §1º estipulava a obrigação de declaração[3] para aquele que deixava o país levando consigo valores “superiores a R$ 10 mil, ou o equivalente em outra moeda”.

Do ponto de vista penal, a majoração do montante a ser declarado pelo sujeito que deixa o Brasil importa particularmente para a modalidade de evasão de divisas prevista no artigo 22, § único, primeira parte, da Lei 7.492/1986[4], que alcança sobretudo[5] as condutas dos agentes que, pretendendo transpor as fronteiras brasileiras, levam consigo de qualquer modo (por exemplo, na bagagem ou junto ao corpo) reais em espécie ou em moeda estrangeira acima do limite estipulado para a dispensa de declaração perante a Delegacia da Receita Federal do Brasil.

Sob esse contexto, o aumento do limite para até US$ 10 mil ou seu equivalente em outras moedas inegavelmente aumenta o campo da licitude penal, representando, assim, uma inovação legislativa mais benéfica (lex mitior) ao agente. Por força do disposto no artigo 5˚, XL, da Constituição, e do artigo 2˚ do Código Penal, essa disposição mais favorável ao réu retroage para atingir todos os comportamentos perpetrados antes da sua vigência, corporificando, pois, para os que cometeram a evasão de divisas, uma hipótese de abolitio criminis[6].

Concretamente: com o advento do artigo 14, §1º, da Lei 14.286/2021, não configuram mais condutas delituosas o porte ou a remessa de moeda ou divisas em espécie ao exterior, ainda que não haja a “Declaração Eletrônica de Bens de Viajantes (e-DBV)”, se o valor total não exceder US$ 10 mil ou seu equivalente em outras moedas, ou, em se tratando de volume superior, ter sido a operação cambial realizada em conformidade com a regulamentação estabelecida pelo Banco Central do Brasil[7]. Sob o olhar do passado, aqueles que, sob a vigência do artigo 65 da Lei 9.069/1995, e sem a devida declaração à Delegacia da Receita Federal do Brasil, transportaram para o exterior valores superiores a R$ 10 mil, ou o equivalente em outra moeda, mas inferiores a US$ 10.000,01, ou o equivalente em outra moeda, terão a punibilidade do delito de evasão de divisas extinta em virtude da retroativa ocorrência da abolitio criminis.

No caso, descabe cogitar a incidência do artigo 3˚ do Código Penal, que trata das leis temporárias e das leis excepcionais[8], pois inexiste indicativo concreto que os patamares de R$ 10 mil e US$ 10 mil foram estipulados e posteriormente modificados pelo legislador em função de um contexto economicamente extravagante ou de uma singular situação cambial que impusesse a ultratividade[9] do artigo 65, §1˚, da Lei 9.069/1995. Por consequência, representa imperativo constitucional e legal a desembaraçada retroatividade do conteúdo penalmente mais benéfico contemplado no artigo 14, §1º, da Lei 14.286/21, em relação ao crime de evasão de divisas tipificado no artigo 22, § único, primeira parte, da Lei 7.492/1986.

2) A tipicidade objetiva do crime do artigo 16 da Lei 7.492/1986

O artigo 16 da Lei 7.492/1986 criminaliza o comportamento do agente que faz operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida mediante declaração falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários ou de câmbio, cominando a pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa.

A caracterização desse tipo penal exige uma dupla complementação. A primeira deriva da própria Lei 7.492/1986, que define, para fins eminentemente penais, instituição financeira[10]. O conceito penal difere, porém, da disciplina delineada para a generalidade dos casos (extrapenais), prevista no artigo 17 da Lei 4.595/1964[11], pois considera como instituição financeira somente a pessoa jurídica ou física – esta por equiparação[12] – que operar recursos financeiros de terceiros.

A segunda complementação provém da expressão “sem a devida autorização” contida no tipo penal, revelando que a sanção criminal incidirá apenas nos casos em que a atividade desempenhada pela sociedade necessitar de autorização do Banco Central do Brasil[13].

A despeito de um intenso debate acadêmico sobre a sua natureza jurídico-penal[14], o crime do artigo 16 da Lei 7.492/1986 tem sido considerado habitual impróprio ou acidentalmente habitual pela jurisprudência majoritária[15]. Isso significa que um único ato é suficientemente apto para consubstanciar a “operação” da instituição financeira à margem da autorização do órgão regulador, muito embora a sua reiteração não enseje a pluralidade de crimes.

O artigo 19 da Lei 14.286/2021, todavia, dispôs que os novos preceitos regulamentadores do mercado de câmbio brasileiro não se aplicam às operações de compra ou venda de moeda estrangeira em espécie, “no valor de até US$ 500 ou seu equivalente em outras moedas, realizadas no país, de forma eventual e não profissional, entre pessoas físicas”. Embora esse dispositivo legal não preencha imediatamente, como elemento normativo, o conteúdo do delito do artigo 16 da Lei 7.492/1986, ele representa uma importante ferramenta interpretativa para a verificação, no caso concreto, do risco proibido que dará azo à imputação penal.

Com efeito, não se pode cogitar de risco proibido se o comportamento do sujeito estava alinhado à normatização extrapenal existente sobre sua atividade ou ramo de atuação[16]. Assim, o agente que realizar operações de compra e venda e moeda estrangeira em espécie (câmbio manual[17]) no valor de até US$ 500 ou seu equivalente em outras moedas, de modo episódico e não profissional, entre pessoas físicas não mais cometerá o crime de operar instituição financeira sem autorização legal, uma vez que o seu comportamento estará adstrito ao espaço de risco permitido que foi estabelecido pelo artigo 19 da Lei nº 14.286/21.

De outro lado, as operações de compra e venda de moeda estrangeira em espécie que ultrapassarem o montante de US$ 500 ou seu equivalente em outras moedas, ou aquelas que, ainda que inferiores a esse patamar, apresentarem aspectos de profissionalidade e de habitualidade, ingressarão na esfera de risco proibido e, por conseguinte, caracterizarão o delito financeiro definido no artigo 16 da Lei 7.492/1986.

3) Aplicação imediata de normas penais benéficas em período de vacatio legis

O legislador impôs à Lei 14.286/2021 uma vacatio legis de um ano a contar da publicação do texto normativo no Diário Oficial da União (30/12/2021)[18]. Tendo presente a previsão de normas penais de caráter benéfico (supra I) e de dispositivos com a aptidão de conferir uma nova interpretação sobre os limites do risco proibido (supra II), surge a dúvida acerca da aplicação imediata desses recentes preceitos benignos, ou a necessidade de se aguardar o decurso do período determinado para o início da vigência da nova legislação cambial (29/12/2022).

A questão, sob a perspectiva do Direito Penal, não é nova, e foi debatida, por exemplo, com o advento da Lei 7.209/1984, que modificou a Parte Geral do Código Penal, e instituiu uma vacatio legis de seis meses[19]. Na ocasião se debateu a incidência de medida de segurança ao agente imputável (denominado sistema do duplo binário), possibilidade esta que havia sido banida pela Lei 7.209/1984.[20]

Existem, em suma, dois entendimentos sobre a aplicação imediata de preceito benéfico contido em lei sob vacatio legis: 1) o tempo que vai da publicação da lei até a sua efetiva vigência não é de suspensão dos efeitos da lei anterior, de sorte que prevalece inalterada a lei antiga, ainda que seja uma lei penal mais gravosa (lex gravior)[21]; 2) a retroatividade da lei penal mais benéfica decorre do postulado da legalidade e de expressa disposição constitucional (artigo 5˚, XL, da Constituição); outrossim, por representar uma garantia constitucional, a aplicação da lex mitior não pode sofrer protraimento ou qualquer forma de embaraço, devendo ser reconhecida e aplicada imediatamente pela autoridade.[22]

Ainda que sob vacatio legis, a lei existe juridicamente, e se encontra perfeita e completa[23]. O lapso temporal existente entre a publicação e a sua efetiva vigência serve tão somente ao propósito de a norma ser de conhecimento da sociedade em geral e de os órgãos encarregados de aplicá-la e executá-la se prepararem adequadamente para isso.

Os dispositivos penalmente benignos da Lei 14.286/2021 refletem uma nova visão estatal acerca do mercado de câmbio brasileiro e, sob uma perspectiva político-criminal, não se justifica que o Estado continue a impor a pena em prejuízo de valores jurídicos fundamentais do transgressor da norma quando a considera inútil, anacrônica e iníqua.[24]

Sendo assim, parece-me que os princípios constitucionais da legalidade e da retroatividade da lei penal mais benéfica – permeados pela necessidade de preservação intransigente da dignidade da pessoa humana[25] – não podem ser obstaculizados pelo legislador ordinário, devendo ter eficácia imediata em relação ao agente que, em virtude de uma dada situação concreta, pode potencialmente ser alcançado pelos seus efeitos benignos.

Essa indeclinável imposição de caráter constitucional e legal sucederá no caso do delito de evasão de divisas previsto no artigo 22, parágrafo único, primeira parte, da Lei 7.492/1986, em função da majoração do patamar para a declaração obrigatória de porte de valores em espécie, implementada no artigo 14, §1º, da Lei 14.286/2021, que contempla, como anotado alhures, uma notável hipótese de abolitio criminis.

Do mesmo modo, incidirá também para o crime de operar instituição financeira sem autorização legal (artigo 16 da Lei 7.492/1986), haja vista que a recente regulamentação do artigo 19 da Lei 14.286/2021, para as transações de compra ou venda de moeda estrangeira em espécie entre pessoas físicas, inaugurou um novo espaço de risco proibido do comportamento que deverá ser levado em consideração imediatamente pelo aplicador da lei, sem que seja necessário aguardar o término do período de vacatio.

4) Conclusões

Do presente estudo, extraem-se as seguintes conclusões preliminares:

1 -Ao promover uma ampla reconfiguração no mercado de câmbio brasileiro, a Lei 14.286/2021 implementou uma nova regulamentação de dispositivos legais que complementam tipos de delitos contra o sistema financeiro nacional, destacando-se a evasão de divisas (artigo 22, parágrafo único, primeira parte, da Lei 7.492/1986) e a operação de instituição financeira sem autorização legal (artigo 16 da Lei 7.492/1986);

2 - O artigo 14 da Lei 14.286/2021 aumentou o limite do porte não declarado de valores, para até US$ 10 mil ou seu equivalente em outras moedas, pelo sujeito que deixa o território nacional. Essa majoração representa uma nítida hipótese de abolitio criminis em relação àqueles comportamentos de evasão de divisas (artigo 22, parágrafo único, primeira parte, da Lei 7.492/1986) cometidos por intermédio do porte ou da remessa de moeda ou divisas em espécie ao exterior, mesmo que não haja a “Declaração Eletrônica de Bens de Viajantes (e-DBV)”, se o valor total não exceder US$ 10 mil ou seu equivalente em outras moedas;

3 - Por se tratar de preceito legal mais benéfico com caracteres de Direito Penal (artigo 14 da Lei 14.286/2021), todos aqueles agentes que perpetraram a modalidade de evasão de divisas mediante transporte, para o exterior, de valores superiores a R$ 10 mil, ou o equivalente em outra moeda, mas inferiores a US$ 10.000,01, ou o equivalente em outra moeda, sem declaração à Receita Federal do Brasil, serão beneficiados retroativamente e, por consequência, terão a sua punibilidade extinta na forma do artigo 107, III, do Código Penal.

4 - Inexiste indicação de que os patamares de R$ 10 mil e de US$ 10 mil foram estipulados pelo legislador em função de um contexto economicamente anômalo ou excepcional que pudesse ensejar a incidência do artigo 3˚ do Código Penal e a correspondente ultratividade ao revogado artigo 65, §1˚, da Lei 9.069/1995;

5 - O espaço do risco proibido para a imputação penal do crime do artigo 16 da Lei 7.492/1986 ganhou novos contornos com o advento do artigo 19 da Lei 14.286/2021. Não haverá tipicidade objetiva para o delito de operar instituição financeira sem autorização legal se o agente realizar operações de compra e venda de moeda estrangeira em espécie no valor de até US$ 500 ou seu equivalente em outras moedas, de modo episódico e não profissional entre pessoas físicas.

6 - Os princípios constitucionais da legalidade e da retroatividade da lei penal mais benigna, associados à uma interpretação que prestigie verdadeiramente o postulado da dignidade da pessoa humana, impõem que os benefícios penais contemplados na Lei 14.286/2021 tenham eficácia imediata, ainda que submetidos, pelo legislador, a um período de vacatio legis.

7 - A obrigação de aplicar os preceitos penais mais favoráveis sem aguardar o decurso do período de vacatio legis ocorre tanto em relação ao delito de evasão de divisas previsto no artigo 22, único, primeira parte, da Lei 7.492/1986, como ao crime de operar instituição financeira sem autorização legal (artigo 16 da Lei 7.492/1986). Para o primeiro, haverá uma retroativa abolitio criminis em razão do aumento do patamar para a declaração de porte de valores em espécie implementada no artigo 14, §1º, da Lei 14.286/2021; para o segundo, a regulamentação mais favorável estabelecida pelo artigo 19 da Lei 14.286/2021 acarreta uma nova e mais vantajosa concepção acerca das fronteiras do risco proibido do comportamento.

Referências

[1] Fenômeno que diz respeito à complementação de tipos penais por meio de conceitos, normas ou atos administrativos. Cf., por todos, GRECO, Luís. A relação entre o direito penal e o direito administrativo no direito penal ambiental: uma introdução aos problemas da acessoriedade administrativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais 58 (2006), pp. 152-195; HORTA, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo: da natureza do erro sobre o dever extrapenal em branco. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 215-244.

[2] Cf. art. 28, XXVII, “a”, da Lei n. 14.286/2021.

[3] Essa declaração deve ser feita eletronicamente perante a Delegacia da Receita Federal do Brasil por intermédio da denominada “Declaração Eletrônica de Bens de Viajantes (e-DBV)”.

[4] Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

[5] A elementar “a qualquer título” revela a amplitude do comportamento incriminado e a consequente irrelevância da forma por meio da qual ocorre a saída ilegal de moeda ou divisa do território brasileiro), muito embora o transporte físico de numerário se revele como sendo o comportamento ilícito mais comum do ponto de vista casuístico. Cf. FELDENS, Luciano; SCHMIDT, Andrei Zenkner. O crime de evasão de divisas: a tutela penal do sistema financeiro nacional na perspectiva da política cambial brasileira. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 175.

[6] Causa extintiva de punibilidade nos termos do art. 107, III, do Código Penal.

[7] Cf. art. 14, § 1˚, II, da Lei n. 14.286/21.

[8] Art. 3º – A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.

[9] A ultratividade é a qualidade da norma de ter eficácia mesmo depois de cessada a sua vigência. É intenso o debate acerca de o conteúdo de normas penais incriminadoras ostentar, em algumas situações, natureza excepcional, notadamente no Direito Penal Econômico, marcado, como mencionado no início deste estudo, pela acessoriedade administrativa, e, portanto, pródigo no manejo de normas penais em branco e de tipos penais com elementos normativos (Cf. TIEDEMANN, Klaus. Derecho penal económico: introducción y parte general. Perú: Grijley, 2009, p. 129 e ss.; GARCIA CAVERO, Percy. Derecho penal económico: parte general. Tomo I, 2ª edición, Perú: Grijley, 2007, p. 145 e ss.; HORTA, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo: da natureza do erro sobre o dever extrapenal em branco. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 219-244). No caso do crime de evasão de divisas, essa discussão assume notável relevância diante da conduta tipificada no art. 22, parágrafo único, parte final, da Lei n. 7.492/1986 (“nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente”), haja vista que, pelo menos desde o ano de 2001, o delito tem sido complementado por atos administrativos do Banco Central do Brasil que passaram a determinar um crescente limite de declaração de bens e valores mantidos por brasileiros no estrangeiro: R$ 10.000,00 (dez mil reais) em 2001 (Circular/Bacen n. 3071) até US$1.000.000,00 (um milhão de dólares dos Estados Unidos da América), ou seu equivalente em outras moedas, em 2020 (Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 4.841), valor que vigora até o presente. Sendo assim, somente comete evasão de divisas o residente no Brasil que mantiver no exterior bens e valores acima dessas somas e não fizer a correspondente Declaração anual de bens no exterior (DCBE) ao Banco Central do Brasil. Para tanto, vide os comentários de Marina Pinhão Coelho Araújo ao livro de Manoel Pedro Pimentel. Crimes contra o sistema financeiro nacional: comentários à lei 7.492, de 16.6.86. 2ª edição, revista e atualizada, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 191-192; igualmente, CAVALI, Marcelo Costenaro. Exame do crime de manutenção de depósitos não declarados no exterior na APN 470. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Vol. 106, jan-fev. 2014, p. 243-249. A doutrina brasileira tem se dividido sobre os atos administrativos que estipularam os limites de declaração de bens no exterior constituírem leis excepcionais – e, por conseguinte, serem dotados de ultratividade – na forma do art. 3˚ do Código Penal. Para uma visão panorâmica: FELDENS, Luciano; SCHMIDT, Andrei Zenkner. O crime de evasão de divisas: a tutela penal do sistema financeiro nacional na perspectiva da política cambial brasileira. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 186; Defendendo a inexistência de ultratividade, DELMANTO JUNIOR, Roberto. Manutenção de conta bancária no exterior e o crime do art. 22, parágrafo único, in fine, da Lei n.˚ 7.492/86. Revista Jurídica do Ministério Público do Mato Grosso, Vol. 1, n. 1, jul./dez. 2006, p. 97-98; e a retroatividade restrita à Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 4.841/2020: FELDENS, Luciano; HOFMEISTER NETO, Rubens. Crime de evasão de divisas: a retroatividade da resolução CMN 4.841. Conjur, 28 de agosto de 2020, acesso em 03.1.2022 em https://www.conjur.com.br/2020-ago-28/feldens-hofmeister-neto-crime-evasao-divisas.

[10] Art. 1º Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.Parágrafo único. Equipara-se à instituição financeira: I – a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros; II – a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual.

[11] Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.

[12] Criticamente, acerca da equiparação à pessoa física, COSTA, Helena Lobo da. Manoel Pedro Pimentel. Crimes contra o sistema financeiro nacional: comentários à lei 7.492, de 16.6.86. 2ª edição, revista e atualizada, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 38-39.

[13] Necessitam de autorização do Banco Central do Brasil para constituição e funcionamento as seguintes instituições (Lei 4.595/1964, art. 10, X, a, com a redação dada pela Lei 7.730/1989; Lei 14.286/21, art. 3˚; Res. 2.788/2000; Res. 3.426/2006; Res. 4.122/2012): bancos múltiplos; comerciais; de investimento; de desenvolvimento; de câmbio; e cooperativos; sociedades de crédito, financiamento e investimento (financeiras); sociedades de crédito imobiliário; companhias hipotecárias; agências de fomento; sociedades de arrendamento mercantil (Leasing); sociedades corretoras de títulos e valores mobiliários; sociedades distribuidoras de títulos e valores mobiliários; sociedades corretoras de câmbio; cooperativas de crédito; sociedades de crédito direto; sociedades de empréstimo entre pessoas; sociedades de crédito ao microempreendedor e à empresa de pequeno porte; administradoras de consórcios; instituições de pagamento, quando superado determinado volume de operações.

[14] Cf. MAIA, Rodolfo Tigre. Dos crimes contra o sistema financeiro nacional: anotações à lei federal n. 7.492/86. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 109. Pimentel também dispensa a prova da habitualidade (PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro nacional: comentários à lei 7.492, de 16.6.86. 2ª edição, revista e atualizada, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 147), assim como Prado (PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 295). Contra, deduzindo a necessidade de habitualidade da expressão “fazer operar”, COSTA, Helena Lobo da. Manoel Pedro Pimentel. Crimes contra o sistema financeiro nacional: comentários à lei 7.492, de 16.6.86. 2ª edição, revista e atualizada, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 150; e COSTA JR., Paulo José da; QUEIJO, Maria Elizabeth; MACHADO, Charles Marcildes. Crimes de colarinho branco. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 115; TÓRTIMA, José Carlos. Crimes contra o sistema financeiro nacional. 2. ed. rev., ampl. e atual., inclusive com comentários aos crimes de manipulação de mercado e uso indevido de informações privilegiadas introduzidos pela Lei n. 10.303/2001. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 104-105.

[15] Tribunal Regional Federal da 3ª Região: Apelação Criminal n. 0015863-14.2007.4.03.618, j. em 24.11.2015, Rel. Hélio Nogueira; Apelação Criminal n. 0000446-02.2000.4.03.6105, j. em 02.08.2010, Rel. Ramza Tartuce; Embargos Infringentes e de Nulidade nº 0016259-09.2014.4.03.6128/SP, j. em 21.3.2019, Rel. Fausto De Sanctis; Tribunal Regional Federal da 5ª Região: Apelação Criminal n. 2003.83.0002177-8, j. em 12.12.2013, Rel. Joana Carolina Lins Pereira.

[16] Como adverte Luís Greco, as chamadas normas jurídicas de segurança, se existentes, servem como standard para a aferição do risco proibido, de modo que a sua violação constitui um “relevante indício de que o risco é juridicamente desaprovado”. GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva, 4. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 59. O inverso, contudo, não é verdadeiro; se a inexistência de infringência a uma norma jurídica sem conteúdo penal – como as normas de Direito Administrativo – tem o condão de afastar a tipicidade objetiva em razão da ausência de risco desaprovado, a violação de uma norma extrapenal que regulamenta determinado setor da atividade humana não pode ensejar, por si só, e como efeito imediato, a imputação penal. É que as normas técnicas, pondera Luís Greco, podem configurar o ponto de partida, mas não o ponto de chegada para o exame do caráter juridicamente desaprovado da ação perigosa (Um panorama da teoria da imputação objetiva, cit., p. 63).

[17] GAROFALO FILHO. Emilio. Câmbio$: princípios básicos do mercado cambial. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 166.

[18] Art. 29 da Lei n. 14.286/21.

[19] Art. 5˚ da Lei n. 7.209/84.

[20] Para ulteriores referências, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: a nova parte geral. 11ª edição, Rio de Janeiro: 1987, p.403 e ss.; SUANNES, Adauto Alonso. Lex mitior e vacatio legis: um caso de impossibilidade jurídica. Revista Justitia n. 46 (125), abr./jun. 1984, p. 55-61.

[21] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte geral, 1˚ Volume, 21ª edição, 1998, São Paulo: Saraiva, p. 78.

[22] ZAFFARONI. E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: teoria geral do Direito Penal. 1˚ Volume, 4ª edição, Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 215-216; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, Volume 1. 17ª edição, 2012, p. 209. Sob esse contexto, merece destaque a opinião de Alberto Silva Franco: “O efeito retroativo da norma penal benéfica, determinado, em nível constitucional, parte da própria publicação da lei que, desde então, porque existente no mundo jurídico, está dotada de eficácia e de vigência, e não pode ser obstaculado, por nenhum outro motivo” (FRANCO, Alberto Silva. Temas de Direito Penal: breves anotações sobre a Lei n. 7.209/84. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 18).

[23] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume 1, 19ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 74.

[24] Cf. por todos, ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general; t. I – fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Madrid: Civitas, 1997, p. 167 e ss.

[25] Art. 1˚, III, da Constituição da República. Cf., sobre o tema: COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 62 e ss.

* Rodrigo de Grandis é professor de Direito Penal da FGV-SP, da Uninove e do IDP-DF. Procurador da República. Doutor e Mestre em Direito Penal (USP)
** Artigo publicado originalmente no site Jota

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