Midas, garimpo e a tragédia Yanomami

*Carlos Alberto Vilhena

O rei de Frígia tem muito em comum com os garimpeiros que ocupam a Amazônia, pondo em risco o meio ambiente, a vida das populações indígenas daquela região e de futuras gerações. 

Midas era um sujeito muito rico. Mais do que rico, era rei de um lugar chamado Frígia. Mais do que rico e rei, era obcecado por ouro. Tão obcecado, que se divertia contando as moedas do tesouro real.

O rei de Frígia tem muito em comum com os garimpeiros que ocupam a Amazônia, pondo em risco o meio ambiente, a vida das populações indígenas daquela região e de futuras gerações. 

Midas era um sujeito muito rico. Mais do que rico, era rei de um lugar chamado Frígia. Mais do que rico e rei, era obcecado por ouro. Tão obcecado, que se divertia contando as moedas do tesouro real.

Diz a lenda que Midas fez um favor ao deus grego Dionísio. Em retribuição, o deus comprometeu-se com atender-lhe um pedido, qualquer que fosse. O monarca não pensou duas vezes: desejou transformar em ouro tudo o que tocasse.

Não é difícil de imaginar a alegria do soberano ao ganhar seu dom: tocou numa pedra, ela virou ouro; numa árvore, o mesmo resultado; num inseto, idem. Sua satisfação certamente era imensa.

Mas tudo o que é bom dura pouco: seu poder não vinha com um botão de desligar. A comida e a bebida que ele tentava ingerir também viravam o metal precioso. Midas morreria de sede e de fome, se mantivesse tal habilidade. Desesperado, pediu a Dionísio que o livrasse daquele dom – ou seria maldição? –, no que foi atendido. Salvou-se por um triz.

A perdição do rei foi sua falta de perspectiva. O fascínio pelo ouro o cegou para a autodestruição embutida em seu desejo. Se tivesse refletido mais, teria sido poupado de tanto sofrimento.

Midas tem muito em comum com os garimpeiros que ocupam a Amazônia, pondo em risco o meio ambiente, a vida das populações indígenas daquela região e de futuras gerações. A faísca do ouro cega esses invasores para as consequências de suas ações.

Hoje, mais de 90% da área de garimpo no Brasil se concentra na Amazônia, especialmente nos Estados do Pará e de Mato Grosso. E uma parcela razoável dessa atividade ocorre na ilegalidade. Em ao menos 12% das áreas de garimpo no Brasil não se respeitam áreas de proteção ambiental e terras indígenas, locais vedados à garimpagem.

A mata e os indígenas, aliás, não são vistos com bons olhos pelo pessoal da bateia. Afinal, é mais difícil de tirar ouro do solo se há árvores e povos originários atrapalhando o trabalho. Os invasores, então, acabam com a floresta e com os povos que a habitam.

Além do desmate direto, o garimpo acaba com a floresta por meio da poluição do solo e das águas com mercúrio, metal pesado utilizado na lavra do ouro. Esse veneno contamina fauna e flora, diminuindo a cobertura vegetal da floresta.

Os prejuízos da destruição florestal são mais do que conhecidos, na forma de uma mudança climática caracterizada por chuvas torrenciais e secas intensas em todo o mundo. A Floresta Amazônica, ao absorver o gás carbônico que promove o aquecimento global, é um dos grandes escudos mundiais contra esses eventos extremos.

O Brasil, na condição de grande produtor agrícola, já sofre as consequências dessa mudança. Em 2021, as perdas dos produtores de soja da Região Sul, em razão da seca, estiveram na casa de R$ 100 bilhões. E esse cenário deve piorar bastante, caso a temperatura global continue subindo.

É verdade que o desmatamento causado na Amazônia pelo garimpo é menor do que o provocado pela agropecuária. Porém não se trata de algo desprezível. Em 2022, os garimpeiros desmataram 3,8 mil km2 no Pará, mais do que a soma das áreas dos municípios de Belém, Rio de Janeiro e São Paulo.

Os indígenas, por sua vez, têm sofrido com, entre outras coisas, o envenenamento por mercúrio, a disseminação de doenças trazidas pelo homem branco e os ataques dos garimpeiros.

Atualmente, o maior desastre provocado pelo garimpo se apresenta nas terras dos Yanomamis, em Roraima. Postos de saúde destruídos, assassinatos de indígenas, desnutrição grave, malária, crianças expelindo vermes pela boca e a pior taxa de mortalidade infantil do planeta configuram um cenário de tragédia humanitária sem precedentes no passado recente do Brasil.

O cataclismo ambiental e humanitário em Roraima tem, infelizmente, colaboração do poder público. O discurso e as (in)ações do governo Bolsonaro estimularam a invasão do território Yanomami pelos garimpeiros. A terra indígena ocupada pelos invasores em Roraima aumentou de 440 hectares, em 2020, para 1,5 mil hectares, em 2021.

A administração Bolsonaro foi ainda mais nociva do que se tinha conhecimento. Desde 2021, o governo federal tinha ciência do grande déficit nutricional por que passavam os Yanomamis, mas, mesmo assim, cortou-lhes o envio de cestas de alimentos, o que ajudou a criar o quadro de pessoas esquálidas visto hoje.

Parte da responsabilidade também recai sobre o governo de Roraima. O governador Antônio Denarium – cujo nome coincidentemente lembra denário, moeda da Roma antiga – apresentou e aprovou projeto de lei estadual que permitia o uso de mercúrio na mineração de ouro. Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal (STF) invalidou essa lei (ADI 6.672/RR).

Outra lei sancionada por Denarium impedia a destruição do maquinário de garimpo apreendido em operações policiais ou de órgãos ambientais. Ela foi suspensa liminarmente pelo STF no ano passado e o julgamento virtual já foi iniciado (ADI 7.204/RR).

Tanto Bolsonaro quanto Denarium têm um conceito, digamos, peculiar dos indígenas. Em 2020, o então presidente disse: “O índio mudou, tá evol... Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós. Então, vamos fazer com que o índio se integre à sociedade e seja realmente dono da sua terra indígena, isso é o que a gente quer aqui”. Denarium, em janeiro deste ano, afirmou: “Tenho 260 escolas em comunidades indígenas. Eles querem ser advogados, professores, médicos. Eu acho correto. Eles têm de se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho”. O discurso de ambos coloca os povos originários como seres atrasados e que precisam ser absorvidos por uma sociedade ocidentalizada, como se fosse possível criar hierarquias entre culturas. O dicionário tem um bom nome para esse tipo de atitude: preconceito.

Preconceito, aliás, utilizado como justificativa para a exploração do ouro em terras indígenas. Pela lógica do homem branco, o suposto enriquecimento financeiro traria avanços para os povos originários, ainda que eles desejem apenas viver em paz em suas terras.

Em seu desejo por ouro, Bolsonaro, Denarium e os garimpeiros, como Midas, não enxergam as consequências de longo prazo dessa vontade. Cabe à sociedade mostrar-lhes que o custo a pagar é exorbitante para todos, especialmente para os indígenas.

Por mais que alguém seja insensível à catástrofe climática por não crer que ela venha a ocorrer, ou por achar que esse desastre ocorrerá num futuro distante, é impossível negar o sofrimento do povo Yanomami em Roraima e de outras nações indígenas no restante do País.

Ver pessoas reduzidas literalmente a pele e osso, com crianças esqueléticas, incapazes de se mexer, e gente morrendo por inanição, envenenamento e doenças de fácil tratamento, como verminoses, deveria despertar em nós um mínimo de indignação e solidariedade.

O custo humano da exploração do suposto El Dorado amazônico é alto demais. Se permitirmos que isso prossiga, encheremos o bolso de alguns, mas esvaziaremos nossos corações do restante de humanidade que ainda temos.

O Ministério Público Federal (MPF) vem agindo de forma consistente na proteção da terra indígena Yanomami. Se os resultados atuais não refletem essa atuação, isso está vinculado ao reiterado descumprimento de ordens judiciais pelos órgãos públicos responsáveis por atuar em defesa dos povos originários e da floresta.

Entre outras iniciativas, o MPF ajuizou, em 2020, ação na Justiça Federal para remoção dos garimpeiros daquela região, bem como para reativação de bases de proteção etnoambientais naquele território. Em 2021 e no ano passado, apresentou recomendações visando à reorganização do atendimento de saúde nas terras Yanomamis.

A remoção dos garimpeiros começa de forma efetiva agora, depois de atuação insuficiente do governo anterior, mesmo sob ordens judiciais decorrentes das ações do MPF.

No dia 10 de fevereiro, a Polícia Federal e as Forças Armadas iniciaram uma operação para inutilizar os meios de transporte e as máquinas empregados no garimpo em terras Yanomami. Esse tipo de asfixia é o primeiro passo na retomada da normalidade naquele território.

Se há quem busque ouro de forma ilegal, é porque existe quem o compre. A falta de controle de origem do minério comercializado estimula tragédias como a vista em Roraima. Basta o garimpeiro dizer que extraiu o metal de um local legalizado, porque não há fiscalização sobre a real origem do produto. Se queremos impedir mais tragédias como a Yanomami, é imprescindível fiscalizar esse tipo de comércio. Caso contrário, muitas das joias e barras de ouro oriundas do Brasil estarão manchadas com o sangue indígena.

Neste contexto, mantém-se essencial o apoio da sociedade em prol da defesa de nossas áreas de proteção ambiental e dos povos originários deste país. Isso passa pela atuação do Estado no apoio sanitário, nutricional e de segurança aos indígenas, na exigência de uma rígida fiscalização sobre a comercialização do ouro, bem como no monitoramento e proteção da Floresta Amazônica. Sem tais medidas, ajudaremos a criar um hoje calamitoso para nossa geração e talvez um amanhã inexistente para as gerações futuras.

Ainda há tempo para, como Midas, desistirmos das escolhas ruins, deixarmos de lado a cegueira pelo ouro e olharmos caminhos melhores, em que brilhe, acima de tudo, a dignidade humana.

*Publicado originalmente no Estadão 

Carlos Alberto Vilhena - Procurador Federal dos Direitos do Cidadão 

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